Vamos regressar e mudar (só um pouco) de tema, não joguei também Retro/Grade, mas pelos vistos quase ninguém jogou, logo não será de estranhar. “Pelos vistos” (de novo) jogo é bom, e “pelos vistos” (mais um) foi um flop. Retro/Grade é o bebé de Matt Gilgenbach, criador de Neverending Nightmares, bebé esse que morreu assim que veio ao mundo; falta de promoção adequada ou “estilo estético que não puxa pelas massas” parecem ser os suspeitos por detrás do infanticídio.
As aspas nos “pelos vistos” estão lá porque esta foi a história que ele contou para financiar o Kickstarter de Nightmares. De acordo com o próprio, ele já andava meio-mal e o fracasso à volta do jogo queimou-lhe os fuzíeis todos. Depressão, obsessão-compulsiva, (e alucinações psicóticas cheias de gore, se retirarmos alguma coisa do jogo) – O homem estava cheio de dívidas, e estava a trabalhar noutro projecto, e o seu casamento estava com problemas, e etc. Não sei os detalhes, não li com atenção nenhum artigo sobre o assunto, mas o scare-factor do jogo é um bocado “meta” – após destilação, “pelos vistos”, é sobre um criador de jogos aterrorizado com o fracasso dos seus próprios jogos.
Sim, mas e as alucinações psicóticas cheias de gore? Será mesmo sobre as crises pessoais do autor e Retro/Grade?
Gilgenbach talvez sonhe só com tropes conhecidos de terror, como mansões, cemitérios, clinicas psiquiátricas abandonadas, mulheres-fantasma de cabelo preto e vestidas de branco, bonecos.
4 – 0.

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Mas já chega de dizer mal de dizer mal de Neverending Nightmares.
O jogo faz também lembrar Lone Survivor (que por sua vez faz lembrar Silent Hill 2, no qual se inspirou quase directamente) – e já que falámos de biologia, porque não falar de matemática – se fizéssemos um diagrama de Venn para Lone Survivor, entre o que “veio” de Silent Hill e o que “não veio”, Neverending Nightmares corresponde à ultima categoria.

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Ao contrário de Silent Hill 2, o protagonista de Lone Survivor nunca morre… volta só a acordar – É um sistema inteligente que dá a impressão, de forma implícita, de se estar preso numa série de pesadelos que nunca acaba.
(Neverending…?)
Nightmares (perceberam?) e Lone Survivor têm uma vibe que lembra 1408, de Stephen King, para quem gosta de escrita, ou de Dead of Night, para fãs de cinema, ou de Knock-Knock, da Ice-Pick Lodge, (outro jogo indie saído do Kickstarter).
Em Lone Survivor a ideia de “pesadelo” está tão presente nos sistemas de jogo, na música, no diálogo, no uso de cores, que nem faz sentido distinguir a realidade do sonho. É um side-scroller, com o campo de visão bastante fechado, os cenários quase todos fechados também, é muito claustrofóbico, apesar de não parecer à primeira vista. Olhar para um espelho serve de “teleporte”; como se ao olhar-se ao espelho, o protagonista se lembrasse da última vez que esteve frente a frente com o seu reflexo.
Para Nightmares, o exemplo mais mais fiel ainda é Dead of Night, de 1945, a preto e branco.
Não há quase cor em Nightmares. É impossível escapar-se à impressão que estamos num pesadelo; que nos deslocamos lentamente por corredores escuros, com sombras impossíveis.
O uso de cor em Lone Survivor, tem o mesmo efeito que a quase-ausência dela em Neverending Nightmare.
Regressa-se a sítios por onde já se esteve, mas estão mudados; “isto não estava aqui, aquilo era noutro sítio, porque é que esta parede está neste estado?”; percebe-se que está a decorrer uma batalha pela sanidade mental e a que mente é uma espécie de DJ de espaços.

4 – 1.

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Em Dead of Night, o personagem principal informa os restantes que já viveu aquele dia, que sonhou com ele em detalhe, e sabe tudo o que vai acontecer; que à medida que o dia avança vai-se lembrando. Mais tarde acorda, percebe que foi tudo um sonho, sai de casa, e vive esse mesmo dia com que sonhou; (pensa ele) acorda outra vez, e vive tudo de novo, até voltar a acordar; um ciclo perpétuo.

Muitos filmes inspiraram-se neste; Dead of Night inspirou até uma teoria científica chamada o “Modelo do Estado Estacionário”, proposta por Fred Hoye como alternativa ao Big Bang. Em Nightmares, a história é sempre a mesma: o protagonista acorda, anda por um sítio esquisito, muito esquisito, acontece um momento “oh não, que nojo”, um momento “oh não, o que é que foi isto?” – não está sozinho, há entidade ameaçadora presente, ou mais do que uma – e mais cedo ou mais tarde, seja apanhado ou acabe o nível (ou ambos), morre. E recomeça tudo de novo, “versão remix”.
Já falo um bocado mais de Knock-Knock mais abaixo, mas a vibe Dead of Night, ou talvez mais 1408 – em que o personagem principal nunca sabe se está acordado ou não, e não consegue sair de um quarto de hotel, e mesmo quando consegue, acorda e regressa ao mesmo – essa vibe sente-se até aos ossos; já para não falar que sempre que o protagonista de Knock-Knock acorda, com olheiras enormes, a casa mudou, e muito, mudou toda, o número de quartos, de andares, o tamanho da cave, etc.
Qual é que é a casa real, qual é que é a casa imaginária?
Será que são todas reais?
As mesmas perguntas se aplicam a Neverending Nightmares: o que é que veio do subconsciente, e o que é que veio da memória?
O protagonista matou a sua irmã? Talvez seja uma metáfora para outra coisa. Se sim, quando era mais nova, ou mais tarde? Talvez nem seja a sua irmã, talvez seja a sua mulher. Ou talvez seja só a psiquiatra que tratou dele. Talvez não. Talvez se tenha só tentado suicidar, e esteja a projetar nessa mulher a violência que inflingiu em si. Ou talvez tenha mesmo magoado a sua mulher ou irmã, e se tenha tentado suicidar por causa disso.
Talvez nada disto seja literal, e a interpretação correcta tenha um bocado de tudo. Por vezes parece que não estamos casados, já não sei se ela é minha esposa se é minha irmã; parece que já só está cá por pena, para cuidar de mim; estou a matá-la, lentamente, um “golpe” de cada vez; já não sei para onde ir, o que fazer, o que é o quê; estou preso nos demónios minha infância; contemplo a possibilidade da minha morte a toda a hora; sei que estou a enlouquecer; ela vai deixar-me, como já o fez tantas vezes, e eu vou acabar sozinho nesta casa, cheia de vestígios de das nossas feridas, a andar pelos seus corredores, perdido.
4 – 2.