XCOM: Enemy Unknown não reinventou a roda, mas fê-la voltar à moda: a roda é fixe outra vez, e os miúdos novos estão todos a usá-la.
Há três anos este género não existia no mercado, ninguém se lembrava sequer dele – tentaram transformar Syndicate e XCOM em First-Person Shooters (chegou a haver gente a pensar que era uma piada), correu muito mal, tanto num caso como noutro – toda a gente achava o género antiquado e ninguém o levava a sério.
Ninguém, excepto os senhores da Firaxis; lançaram Enemy Unknown, reanimaram um estilo de jogo que estava cadavérico (não respirava há quase uma década!), e hoje temos tributos como Xenonauts, os Wastelands 2, Shadowrun Returns, e companhia, que desconstroem o “combate tático isométrico tipo xadrez” (como agora o chamo), para incorporá-lo na jogabilidade por turnos que tentam recapturar de jogos antigos.
Seria muito difícil (impossível) Massive Chalice existir hoje sem esta nova versão de XCOM; consegue sentir-se um pouco do seu DNA na jogabilidade e tudo – mas há mais, caros leitores: este artigo está cheio de surpresas (a menos que tenham acabado de ler o artigo de Warmachine Tactics): o Rubber Chicken recebeu Massive Chalice e Warmachine Tactics em simultâneo para fazer antevisão, e pode-se dizer o mesmo dos dois. Fazem parte do mesmo espectro, mas estão em polos opostos e, porque achámos esta coincidência interessante – e porque o renascimento de um género morto é um fenómeno raro (que chamaria até de fenómeno sobrenatural) – decidimos armar-nos em Darwin e aproveitar a oportunidade para comparar os dois jogos.
Se tiverem curiosidade, está aqui o link para a Antevisão a Warmachine Tactics (Spoilers: é um artigo muito melhor que este).
Então mergulhemos em Massive Chalice.
É o segundo projeto de Kickstarter da Double Fine Productions (“casa” do criador lendário, de jogos lendários,Tim Schafer) e, quando Broken Age, o jogo anterior do estúdio, foi dividido em duas partes e tornou-se “Broken Age: Parte 1 – A Desolação de Smaug”, os fãs ficaram ofendidos. Que frase, parecia que eu ia falar de Massive Chalice e acabei a falar de Broken Age; não liguem, mas isso também se deve ao facto de não podermos falar de um sem falarmos do outro. Dizia eu que os fãs da Double Fine ficaram ofendidos, quando o jogo foi financiado com oito vezes o orçamento pedido (um total de 3,336,371 dólares), e o estúdio decidiu fazer um jogo que custava dezasseis vezes mais, e as complicações multiplicaram-se trinta e duas vezes; metade do jogo foi “cortado”, a malta que enterrou dinheiro no projeto não recebeu o jogo primeiro que toda a gente, como lhes foi prometido, (porque o projeto precisou de mais dinheiro e foi para Early Access no Steam), muitos crentes do crowd-funding levaram um balde de água fria e juraram que nunca mais financiavam nada – mas onde houve mais perda de fé, foi do lado dos fãs da Double Fine.
Massive Chalice tem nos ombros o fardo de redimir ou não a Double Fine no que toca a território Kickstarter. Os problemas financeiros de Broken Age foram o resultado de megalomania e/ou falta de integridade, ou será que o estúdio foi, como o público, vítima de um sistema (na altura) ainda por compreender?
E quanto a isso, logo se vê; o que vocês querem saber é do jogo em si.
Eu devorei o gameplay de XCOM; passei horas a fio a jogá-lo, mas havia qualquer coisa acerca do universo de jogo que não me agradava, nem me deixou gostar dele a sério. O tom, as cores, a seriedade militar.
A grande diferença entre XCOM e Massive Chalice é estilística, e não estou só a falar de visuais.
Os fãs de Black & White devem lembrar-se de ter visto – num jogo cósmico sobre espiritualidade, teologia, as guerras religiosas, o que significa ser-se um deus – um anjinho de barbas a dar porrada num diabinho por cima do ecrã de jogo. É um jogo com uma mood serena e de grandiosidade, que não tem vergonha de ser bem-disposto de vez em quando. Massive Chalice, pelo seu nome só, indica isso mesmo; não é um jogo de comédia; o tom é épico, lendário, mítico, muito sóbrio – não é uma aventura de um bando de heróis, é uma guerra de várias gerações contra um inimigo alegórico – mas ainda assim, sente-se com frequência pequenas doses de bom-humor.
Outra referência que nada tem a ver com o género é a série The Sims; Massive Chalice é muito parecido com XCOM, mas tem um “sabor” singular, diferente de tudo o resto; a morte de unidades é permanente nos dois jogos, mas sinto-me mais ligado a estas em Massive Chalice; são menos unidades e mais personagens, no fundo: não queremos só saber deles, mas dos filhos também, e os stats não são só stats, são traços de personalidade que passam dos progenitores para os descendentes. Quando uma unidade se magoa em XCOM, fica mais tempo a ser curada, e passamos menos tempo com ela, enquanto que em Massive Chalice, há unidades inimigas que tiram experiência às personagens; vi várias personagens baixarem de nível porque eu deixei que fossem magoadas, e isso fez-me sentir a dor delas mais intensamente. O melhor de Massive Chalice é subtil. São pequenas coisas.
O jogo passa-se num universo de fantasia medieval (com um pequeno toque steampunk), mas foi desenvolvido por artistas talentosos, desde os interfaces elegantes mas simples, à parte mais técnica, como os filtros de cor e a modelação 3D – não há nada de genérico aqui: todas as partes estão em harmonia estilística umas com as outras, e obedecem a uma visão definida e ímpar.
Quem não tiver ainda dado um salto à Antevisão de Warmachine Tactics vai ler mais ou menos o oposto do que aqui está.
Massive Chalice está em Early Access, mas ao contrário de Warmachine, encontra-se já bastante completo; é um XCOM com outra atitude, e aquilo que está disponível é um ótimo presságio para o jogo que aí vem.
A jogabilidade de XCOM, essa dança de ir mudando de cobertura para cobertura para os inimigos nunca estarem no flanco das nossas unidades, foi bastante alterada – há três classes, com distâncias de ataque diferentes, uma pode esconder-se, outra faz ataques de área, outra pode empurrar os inimigos (e isto são habilidades base; como em XCOM, à medida que as unidades progridem, a jogabilidade de cada classe vai sofrendo mutações) – não há sequer “cover system” tradicional, as unidades estão todas de pé, ou encostadas a elementos de cenário (esconder-se). As linhas dos passos de dança foram tranformadas numa teia de aranha de possibilidades. E em teoria os mapas são gerados de forma procedimental, o que dá variabilidade quase infinita ao jogo; mas isso só poderá ser verificado na versão final com vários playthroughs.
De qualquer modo, variabilidade é o segredo para se sobreviver à Mãe-Natureza; é cultura geral, estudei isso na escola. E talvez essa variabilidade seja o que falta à fórmula genética de XCOM. Só o tempo dirá se Massive Chalice consegue se tornar na nova referência do género, mas estou confiante que sim.