O argumento sempre foi “ah são pixéis”; do que é que estou a falar?
A série GTA, por exemplo, que sempre teve controvérsia à sua volta, e gente frustrada não só pela sua existência, mas sobretudo pela sua extrema popularidade, quer por questões morais, ideológicas, culturais – gente de todos os tipos, desde Vice City, talvez até antes, a GTA V, gente de todos os sítios, continentes, por motivos diferentes – gente ignorante, gente que sabe do que está a falar, gamers, não-gamers. Há sempre um resíduo de ofendidos por GTA, e jogos como GTA, simuladores de violência desumana, violência física, psicológica – quem não está dentro da cultura gamer pode ficar até confuso, com o seu amigo ou amiga aparentemente sã, a divertir-se tanto num autêntico simulador de psicopatia. “Ah, mas são pixéis”, responde-me um pai que oferece Call of Duty ao seu filho de 8 anos.
“Ah, mas é uma paródia”, responde-me uma amiga enquanto decapita três zombies de uma vez; o seu avatar tem um fato de animal vestido; os corpos humanos pegam fogo.
Manhunt, Condemned, Painkiller, Doom, Postal – meros exemplos de séries que não foram recebidas de braços abertos por toda a gente, para falar só de algumas – Bioshock Infinte foi recebido de braços abertos pela crítica quando foi lançado, e à medida que o tempo foi passando, começou a surgir a pergunta pela internet – como um pequeno vírus, que contamina um, e depois outro, aqui e ali, e meses depois se torna um epidemia – “porque é que Bioshock Infinite é tão violento?”; a violência em Bioshock Infinite é gratuita e excessiva, ou não? É uma questão tão interessante como as suas respostas: a violência em Bioshock Infinite contraria a narrativa que o jogo tenta contar, e assim, subtrai-lhe qualidade enquanto obra artística; (ou) a violência em Bioshock Infinte reforça a narrativa que o jogo tenta contar, dizem outros, reforça a personagem violenta que é Booker (protagonista do jogo, entre outras coisas), reforça o tema do jogo, e eleva a qualidade do mesmo. É interessante porque não há consenso e há dois grupos, em polos opostos, a defender ou atacar o jogo com argumentos (também eles opostos), e no entanto ambas as partes, os dois polos, parecem fazer sentido.
GTA V foi atacado há pouco tempo atrás num artigo de opinião na Polygon. GTA V foi defendido, logo a seguir, de várias formas diferentes, com argumentos diferentes, por diversas pessoas (dois exemplos).
O conteúdo misógino do jogo choca alguns que dizem “eu sei que isto são só pixéis a mexer, mas ainda assim não é correto”; outros respondem “não tens o direito de censurar; como dizes e bem, são só pixéis a mexer”; outros dizem “sim, podíamos fazer pixéis a mexer que agradassem a mais gente, de facto, mas continuam a ser só pixéis a mexer, acalma-te”.
Os “pixéis” a mexer parecem ser o common-ground, apesar de tudo. Os criadores de GTA não são (espero eu, se for o caso, que entrem em contacto connosco que escreveremos uma errata) psicopatas, e tampouco são as pessoas que compram GTA, que jogam GTA, e que gostam de jogar GTA (nem todos pelos menos).
O argumento dos “jogos são violentos, logo fazem lavagem-cerebral aos jogadores e tornam-nos mais violentos” cola cada vez menos quando é atirado à parede; pouca gente acredita que quem lançaria um rocket a um autocarro cheio de gente num jogo seria capaz de o fazer na vida real, e os que acreditam são cada vez menos. “É uma brincadeira”; “não é a sério”; é um simulador de acontecimentos violentos, mas não necessariamente de emoções violentas; o sentimento não será de ódio pelo próximo e misantropia pura, será mais de crianças vestidas de cowboys a disparar umas para as outras com armas de borracha – é inocente, não se querem matar – quem mata os seus amigos em Call of Duty gosta (quase sempre) deles, caso contrário não se estaria a divertir com os mesmos.
E foi por isso que, tanto do lado de quem censura como dos apologistas, o mundo não reagiu bem a Hatred.
Hatred, que está a ser desenvolvido por Destructive Creations, foi apresentado à internet com um trailer que abre com a seguinte frase: “o meu nome não é importante, o que é importante é o que estou prestes a fazer” – (vejam o trailer, a sério, não sejam casmurros; peço desculpa aos restantes leitores, que clickaram em “play”) – continuando: “eu odeio este mundo; e os vermes que habitam no seu [mundo] cadáver [seres humanos]. A minha vida tem sido só de ódio, frio, amargo; sempre quis morrer violentamente. É tempo de retibuição, e nenhuma vida é valiosa o suficiente para ser salva.”
Faz lembrar a nota de suicídio de um adolescente que levou uma AK-47 para a escola, não faz? O trailer continua, mostrando-nos um protagonista a disparar em civis indefesos, polícia, a pegar fogo a carros, disparar na cabeça de pessoas a chorar à queima-roupa, esfaqueá-los com facas-de-mato.
Wow. Não é?
“Este jogo foi longe demais”, parecia ouvir-se do teclado de toda a gente.
“Eu vou matar o maís possível; é tempo de matança; é tempo de eu morrer. A minha cruzada de genocídio começa aqui”.
Woooow.
Epá… porquê, Destructive Creations? Isto estava a correr tão bem…
Pessoas pelo mundo inteiro apontaram o dedo ao jogo. Mas são só pixéis, não é? Porque é que esse argumento não servia desta vez? Onde é que estavam os miúdos a disparar com armas de borracha? Onde é que havia inocência, por mais disfarçada que fosse? Os criadores do jogo quiseram deixar bem claro que não havia nenhuma, e fizeram um bom trabalho, feliz ou infelizmente.
“Longe demais” existe? Será que pode? Será que deve? Muita gente é da opinião que sim. Reparem que o jogo é todo a preto e branco; muitos jogos deste estilo usam isto para contrastar com o vermelho, à Lista de Schindler, ou MadWorld – sendo que no último, o vermelho é sangue; mas não, Hatred não quer destacar só sangue, quer destacar disparos, fogo, e sirenes de carros de polícia (e/ou ambulâncias).
Hatred foi retirado da Steam Greenlight.
É compreensível; mas estava certo? Os videojogos são um médium relativamente novo e fácil de atacar; pouca gente dirá que um filme independente é demasiado violento e não pode existir; o mesmo é dez vezes mais verdade para livros – um livro pode ser literalmente pornografia disfarçada e tornar-se num sucesso comercial (ahem), mas regressando – se um jogo ultrapassar a linha do que “pode e não pode fazer”, em termos de violência, e sobretudo em termos de sexo, está tramado; ou melhor: estava.
Plataformas como o Greenlight mudaram um pouco as regras e devolveram mais poder aos criadores de jogos. Hatred pode hoje existir, e apresentar-se ao público da forma que se apresenta.
Talvez há muito tempo atrás também pudesse (note-se: Wolfenstein, o pioneiro definitivo dos shoot-em-up em primeira pessoa (que vieram a tornar-se os FPS), ultra-violento e com suásticas espalhadas pelos seus níveis), mas há coisa de 5 ou 10 anos, não creio. E nem quero entrar no território de se Hatred está uns passos à frente ou atrás, em termos de conteúdo chocante.
Hatred não é nenhum GTA, não há paródia, não há crítica social, não há a vibe “puff, é um jogo, go nuts”, não é sequer um Manhunt, que por mais gratuito que seja, não abre um discurso do protagonista sobre como a vida humana não tem valor, e como quer matar o máximo possível antes de morrer.
Mas essa é a realidade de hoje: nesta revolução, neste renascimento de jogos indie, há regras que ficam por definir: há ou não há espaço para jogos como Hatred?
Gabe Newel é da opinião que há; que há espaço para jogos de todo o tipo, para toda a gente, independentemente do que a Fox News e a TVI possam achar.
Hi, Jaroslaw,
Yesterday I heard that we were taking Hatred down from Greenlight. Since I wasn’t up to speed, I asked around internally to find out why we had done that. It turns out that it wasn’t a good decision, and we’ll be putting Hatred back up. My apologies to you and your team. Steam is about creating tools for content creators and customers.
Good luck with your game
Gabe
Hatred voltou ao Steam Greenlight, e para o Steam, todos os pixéis nascem iguais. Se Hatred pode existir no Steam, jogos como Hatred (em termos de ideologia, ou falta desta, e tom) podem existir no Steam; a porta está aberta para clones sérios de Postal.
E isso não é mau, necessariamente. Resta saber o que o futuro tem reservado para nós.
We’re extremely happy to be back on Steam Greenlight! It’s hard to find proper words to describe what we all feel right now. It’s simply an amazing thing to get such a great news from Gabe Newell himself! THANKS A LOT GABE!
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