Das cinzas às cinzas

Como disse o criador de Braid, e bem, quase toda a gente julga os jogos pela sua aparência, mesmo na comunidade indie (“Regardless of what people want to believe, *almost everyone* judges games by how they look. Including indie developers judging indie games”). É uma frase que 1) soa melhor em inglês do que traduzida por mim para o nosso idioma e 2) resume perfeitamente Desert Ashes.
Dêem um salto à página Steam do jogo e verão que o seu preço base é 10€; verão também que o jogo é pouco conhecido (15 críticas), que quem o comprou parece estar satisfeito (análises “praticamente positivas”), e que é feio; muito, muito feio.

10888223_574015899398505_1008705587_n

E instala-se a dúvida: será que, como não é infrequente acontecer com estúdios inexperientes, não souberam escolher bons screenshots – será que, na verdade, os piores screenshots possíveis de tirar ao jogo estão a ser exibidos na página, por piada kármica, ou maldade do Destino – ou o jogo é assim tão feio mesmo?

E após uns segundos, vão compreender o seguinte: seja o jogo feio ou não, isto é, seja por inexperiência de marketing ou seja por inexperiência artística, a “inexperiência” é constante e muita – percebem que o estúdio por detrás do jogo, Nine Tales Digital, é verdinho e não sabe bem o que está a fazer.

10841450_574015999398495_1569783900_n

É justo estar a ser bruto desta forma para um estúdio indie? A meu ver, é – a carta do “somos um estúdio indie, desculpem lá” não pode ser sempre jogada, e só resulta até um certo ponto – num bom jogo, seja de há 20 anos atrás ou desta geração, sei quando tenho um menu aberto e quando não tenho, e mais importante, tenho a certeza do que estou a fazer nesse menu – num bom jogo, seja feito por uma pessoa ou um estúdio de dez mil pessoas, não abro o menu principal sem querer quando tento selecionar uma unidade de jogo, e mesmo que fosse o caso, o jogo dar-me-ia mais opções de seleção, não ando a fazer pixel-hunting para resolver a situação. Porque esta é a realidade: o jogo é mais feio do que aparenta ser na sua página, e a sua falta de beleza é só um sintoma de um problema maior: este foi o primeiro jogo que o estúdio fez; tenho a certeza, e se não tiver sido pior ainda. Já trabalhei com várias pessoas que “querem fazer jogos”, mas que nunca trabalharam num jogo, e que ambicionam fazer um magnum opus logo à primeira, uma coisa que não só dê lucro imediato mas que seja um jogo profundo, e bem feito – nunca fizeram um jogo na vida, regra-geral, nenhum deles esteve sequer envolvido em nada do género, e fala-se de percentagens e lucros e de expansões e de tantas coisas, a conversa é sempre a mesma, e o resultado é sempre o mesmo: Desert Ashes.

É justo estar a ser bruto? – respondo-vos isto: é justo um jogo destes estar na Steam ao preço que está em vez de numa App Store?

10850523_574016079398487_395388516_n

As unidades são sprites que fazem loops de 1 segundo, ficam a olhar para o jogador independentemente do seu trajeto, o mapa tem todas as cores do arco-íris, no pior sentido possível, os “combates” são imagens paradas que foram animadas com puppet tool – e é triste, porque apesar de estarem mal animadas, essas as imagens estão muito bem desenhadas, apesar do aspeto das unidades parecer (de um ponto de vista artístico) amador. As animações foram desenhadas frame a frame, à mão – apesar de haver elementos no cenário cheios de detalhe, que parecerem credíveis e “orgânicos”, o cenário em si é demasiado retilíneo, e mal se notam; apesar dos desenhos das unidades militares serem impressionantes, num estilo surreal que parece uma mistura ente Pokémon e Dalí, isso só é verdade caso a caso: o mundo é tão aleatório que não consegue ser memorável, falta-lhe coesão; há imenso esforço de world-building enterrado, mas nada floresce, porque falta lógica interna ao universo criado por Nine Tales Digital.

Se fragmentarmos Desert Ashes em todos os elementos que o compõem, descobrimos que é menos que a soma das suas partes. Tudo começa no menu principal; nem consigo descrever o que está mal no menu inicial, mas envolve o facto de eu ter andado a experimentar várias resoluções de ecrã, e de em nenhuma delas ter conseguido ver o menu todo; envolve também o facto de ser necessário arrastar o menu com o rato para ver os todos os seus elementos (por exemplo, os créditos do jogo encontram-se “canto” superior direito, o que significa um “arrastão” horizontal e dois verticais), o que sugere que há alguma intencionalidade por detrás desta parvoíce; e envolve mais umas coisas, mas entrar em detalhe implicaria escrever outro artigo.

O jogo divide-se numa campanha (e um terço dessa campanha são tutoriais), num multiplayer (friends-only), e num modo de skirmish (com opção de jogar contra a I.A. ou contra outro jogador no mesmo PC); os mapas de skirmish são os mesmos da campanha, cerca de vinte e tal, variam de forma mas não variam muito de tamanho – e esta é a minha forma eufemizada de dizer que os mapas são claustrofóbicos, se não perceberam à primeira – e embora as duas fações sejam relativamente simétricas (cada unidade de um lado tem uma versão equivalente do outro), não há muitos mapas equilibrados, que favoreçam as fações de forma equitativa (o que levanta diversos problemas lógicos e outros paradoxos, que davam direito a um terceiro artigo).

ss_7df21fc3309cdfbfd44b7ba8fba956d3f2c91833.1920x1080

Se gostam de indies porque estão fartos de jogar a mesma coisa todos os anos, não procurem aqui; é um jogo bizarro, sim, mas é interessante? nem por isso – se compram indies como quem dá esmola aos pobres, para dar uma oportunidade a novos criadores ou para “nutrir a comunidade”, há uma fila espera eterna de outros estúdios que merecem 10€ primeiro que estes senhores.

Quando abri o artigo com o tweet de Blow, fiz-lo porque todos os problemas deste jogo estão enraizados no mesmo – é feio, é demasiado feio; ou melhor: não é suficientemente elegante – e neste caso, o que é verdade para os visuais é também para tudo o resto.

Os criadores queriam fazer mais do que sabiam. E quando não se sabe, aprende-se; começa-se de baixo; nos videojogos e em tudo. Talvez Desert Ashes não tenha mereça inteiramente a minha desapreciação – talvez haja ecos de experiências pessoais na opinião que tenho do jogo, de sobre-otimismos de pseudo-desenvolvedores com quem trabalhei que não percebem nada de jogos, que querem fazer tudo mas não sabem fazer nada – mas merece o suficiente.

Postscript (ou epílogo, se preferirem): Desert-Ashesé-um-jogo-de-estratégia-muito-básico-cuja-base-é-um-pedra-papel-tesoura-entre-unidades-aéreas-de-infantaria-e-de-artilharia-A-aquisição-de-unidades-gasta-um-recurso-universal-que-é-ganho-capturando-edifícios-O-objetivo-do-jogador-é-capturar-o-edifício-principal-do-oponente-A-água-congela-de-x-em-x-turnos-o-que-permite-que-unidades-terrestres-se-desloquem-sobre-esta-e-paralisa-unidades-aquáticas-Já-vi-mais–profundidade-e-qualidade-em-títulos-mobile-grátis-e-considerando-o-valor-de-mercado-por-comparação-não-posso-recomendar-a-compra-com-um-preço-acima-de-2€-Não-tome-durante-gravidez-ou-aleitamento-Para-mais-informações-consulte-o-folheto-informativo.