Conversas com demónios – Um Gomu Gomu no Chicken a Shin Megami Tensei IV

Para os ocidentais (e talvez até para os japoneses) a série Shin Megami Tensei é uma série confusa. Está repleta de spin-offs, subséries alternativas e variantes desde que começou a sua caminhada no Japão dos anos 90 na Super Famicom como plataforma mãe. Actualmente temos os nossos Devil Survivors, Devil Summoners, a Digital Devil Saga e os Personas, o singular Strange Journey, todos eles à parte da série Shin Megami Tensei tida como sendo a “principal”. À semelhança da série Final Fantasy, cada jogo da série SMT tem a sua própria história e setting, mas partilha muitos aspectos que lhe são cânone, principalmente a existência de demónios e deuses provenientes de diferentes mitologias, que podem ser tanto nossos inimigos como potenciais aliados. Shin Megami Tensei IV é o verdadeiro sucessor de SMT3 (conhecido por Shin Megami Tensei: Nocturne na Europa) que chegou cá em 2005 exclusivamente para a PS2 – pelo meio foram lançadas as subséries referidas acima e que agora poderiam causar confusão ao leitor. Foi uma espera longa e algo conturbada, considerando que a versão inglesa deste jogo saiu em 2013 na América do Norte e sofreu mais de um ano de constantes adiamentos no seu lançamento europeu, mas habemus SMT4 finalmente pelo Velho Continente.

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Conhecendo as práticas da igreja, senhor monge, estamos a falar de uma manopla metafórica ou de uma manopla literal?

SMT4 desenrola-se no fictício reino oriental de Mikado, um mundo que mistura fantasia medieval, tecnologia e muita mitologia/teologia, tanto ocidental como oriental. Assolado por demónios de origem incerta, Mikado é protegido por uma força militar especificamente concebida para os combater – os Samurai – cujos membros são indivíduos com potencial de utilizar magia e invocar demónios.  Para Flynn, o nosso personagem, o jogo começa precisamente no momento da recruta, em que é atirado para uma série de exames em forma de missões numa gruta subterrânea que é habitada por demónios. A aprendizagem e progressão são imprescindivelmente apoiadas pela Inteligência Artificial “Burroughs” que está instalada na sua manopla, mantendo uma lista de todos os demónios e habilidades, acompanhando-o dentro e fora de combate.

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Esta manopla especial vai fazer de ti um homem, Mulan.

O combate é um dos pontos fortes de SMT4, senão mesmo o seu ponto mais alto. Para além do típico combate por turnos, em que podemos derrotar os demónios explorando as suas fraquezas aos elementos ou tipos diferentes de ataques e magia (quando acertamos numa fraqueza de um inimigo temos direito a um turno extra e vice-versa – os nossos inimigos também podem explorar fraquezas no nosso grupo), podemos também  entrar em diálogo com o inimigo que estamos a combater – porque nem tudo tem de terminar em violência. Inicialmente podemos querer entrar em conversação com os nossos adversários para tentar convencê-los a juntarem-se ao nosso grupo e combater a nosso lado, trazendo consigo as suas forças e fraquezas e dando-nos a possibilidade de fazer uso das suas habilidades – esta opção dá início a um regateio entre o nosso personagem e o nosso adversário, que quererá certamente algo em troca por se juntar a nós (este aspecto é bastante profundo, até porque cada criatura tem o seu comportamento característico e pode ser possível até convencê-lo dando-lhe pouco ou nada se conhecermos bem os seus hábitos e gostos). Se a conversa correr bem, conseguimos recrutar o demónio para o nosso grupo, mas se falhar perdemos o turno e somos atacados. É extremamente satisfatório ganhar um argumento e fazer com que aquele demónio particularmente difícil se junte à nossa causa. Com o desenrolar do jogo podemos até ganhar a capacidade de ter outro tipo de conversações com demónios e pedir-lhes itens ou macca (o dinheiro neste jogo) em troca da sua vida, como autênticos bullies a extorquir o dinheiro do almoço a uma vítima inocente.

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O amigo também é fã dos The Bangles? É claro que podemos conversar!

A série Shin Megami Tensei já tem fama de ter um combate extremamente desafiante, e este não é excepção. Mesmo no início, se não estivermos preparados, um simples random encounter pode-nos destruir por completo. Para alguns bosses é mesmo preciso ter um ou mais combates prévios e tomar algumas notas sobre as suas fraquezas e tipos de ataque para depois recomeçar já preparado e ter uma luta perfeitamente calculada, que mesmo assim consegue ser bastante difícil.  Grinding é imprescindível e salvar o jogo frequentemente é aconselhável (o que podemos fazer sempre ao longo das suas curtas dungeons), principalmente quando avançamos para a parte final do jogo e a curva de dificuldade ascende de uma forma quase impiedosa, de forma a mantermos o nível do nosso personagem e dos demónios elevado. Quando o nosso personagem ascende de nível ele recebe uma série de pontos para subir atributos, mas não consegue aprender habilidades sozinho – é aqui que entram os demónios. Quando demónios ascendem um certo número de níveis e aprendem todas as suas habilidades de base eles oferecem-se para ensinar algumas das suas habilidades ao personagem principal, o que dá uma grande flexibilidade na costumização das habilidades que ele pode ter. Para além do leveling, é também possível fundir demónios para criar um demónio novo – algo que somos encorajados a fazer, principalmente quando um demónio já nos ensinou as habilidades que queremos e porque normalmente é gerado um demónio mais forte e que podemos não ter no nosso Compendium (é possível registar demónios nesse Compendium e invocá-los mais tarde pagando macca). Outro ponto importante de referir é que as habilidades de demónios são herdadas durante a fusão, o que possibilita a criação de demónios únicos – por exemplo, podemos criar um demónio que por sua natureza teria uma fraqueza contra o gelo, mas se usarmos um demónio na sua criação que tem uma habilidade de resistência ou imunidade ao gelo, é possível transferir essa característica por hereditariedade, criando um demónio sem fraquezas, ou que em vez de ser fraco contra um elemento, é em vez disso forte contra ele. É um sistema bem pensado, profundo e flexível, ao qual esta série já nos habituou.

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Aparentemente ter patilhas compridas é um pré-requisito para se ser aceite nos Samurais.

Normalmente os jogos da série SMT não tratam muito bem os recém-iniciados, atirando-os para a refrega sem grande explicação de como o combate funciona ou sem lhes dar grande indicação de onde devem ir ou o que devem fazer, mas SMT4 é uma excepção – ele consegue receber bem novos jogadores e manter-se fiel aos jogadores mais experientes que têm acompanhado a série. A artwork, principalmente das personagens, é decente mas algo insípida – sente-se falta da estética mais “extravagante” dos jogos anteriores, algo que os fãs da série irão certamente notar. Infelizmente a história também empalidece quando comparada com outras (como as da subsérie Persona), com personagens unidimensionais e uma narrativa pouco apelativa. É interessante como as nossas escolhas ao longo da mesma têm peso e irão determinar o final que iremos ver quando terminarmos a nossa aventura, mas a caminho disso temos alguns acontecimentos capazes de revirar olhos. Por exemplo, de entre esses10 finais possíveis existe um ligado à Lei e outro ao Caos e, voltando à história (e sem querer dar spoilers) há dois personagens que vamos encontrar e que eventualmente nos irão fazer uma pergunta que basicamente irá ditar com qual dos dois os nossos ideiais se identificam mais – excusado será dizer que no fundo o que cada um diz é “Olá, eu sou o Sr. Caos” e o outro “Olá, eu sou o Sr. Lei” – é lamentavelmente desinteressante e redutor. Os personagens todos têm vozes dobradas em inglês e o voice-acting é de boa qualidade. A música é medíocre, mas faz um bom trabalho em acompanhar as mudanças de ritmo em combate e mudando de tom dependendo do fluxo da batalha.

O melhor: O sistema de combate. A profundidade de costumização na fusão de demónios. A capacidade de agradar aos velhos fãs e receber bem os novos.

O pior: A história pouco cativante. Personagens desinteressantes.

Apesar de decepcionar um pouco na sua história e personagens, Shin Megami Tensei IV é sem dúvida uma obra de grande qualidade que recomendaria imediatamente a qualquer fã de RPGs e dungeon crawling. O seu sistema de fusão de demónios faz-nos passar bastante tempo a experimentar diferentes combinações possíveis e a capacidade de criarmos uma equipa de demónios feita à medida das nossas necessidades para nos acompanhar oferece uma profundidade sem par. O combate é rápido e eficaz, e a sua opção mais divertida nem envolve combater. É de referir também que SMT4 oferece cerca de 50 horas de jogo para quem se mantiver focado na história principal, mas se quiserem explorá-lo ao máximo ele oferece à vontade mais de 100 horas de jogo. Se estiverem à procura de um RPG para começar bem o ano, este é uma excelente opção.

Shin Megami Tensei IV é um exclusivo para a Nintendo 3DS.