Um espectáculo chamado desastre

Há lugares comuns e estranhas consensualidades que surgem no mundo dos videojogos. Aqueles estranhos e breves momentos em que a comunidade e os media falam em uníssono, e destroem verbalmente um jogo. Sonic Boom é um desses casos, agraciados com a unanimidade crítica e recebendo de muitos o prémio de Pior Jogo de 2014. Da minha parte não quero chegar tão longe: há uma série de jogos igualmente atrozes lançados no ano transacto que poderiam igualmente merecer esse galardão. Mas o meu quase desprezo pelos dois jogos de Sonic Boom (Shattered Crystal da 3DS e Rise of Lyric para a Wii U) materializa-se tão simplesmente no facto de que não vou escrever dois artigos separados, mas apenas um, poupando-me a mim e aos nossos leitores do sacrifício de penosamente ocupar a internet com mais do que um texto sobre estes jogos. O paralelismo que faço com a análise que fiz o ano passado a Sonic Lost World leva-me a acrescentar algo às minhas palavras de então:  poderia resumir todas as próximas centenas de palavras que vão ler com apenas isto: Sonic Boom é um dos piores jogos de Sonic de sempre, rivalizando quase lado-a-lado com Sonic the Hedgehog de 2006, Sonic Unleashed, Sonic Lost World e Sonic and the Black Knight.

Antes de entrar em detalhe tenho de referir que decidi dar uma honesta oportunidade a ambos os jogos. Acima de tudo porque artisticamente fiquei curioso com o redesign conceptual dos personagens de Sonic Boom, e que me conduziu inclusivamente a ver alguns episódios da série que lhes serve de tie-in. Ao contrário do que muitos criticam, os novos concepts dos personagens que todos conhecemos parecem-me arrojado e inovadores, aproximando-os mais de uma linguagem “cartoonesca” (por razões óbvias) e tendo sido, para mim, a nível estético, uma respeitável inovação imputada ao nosso querido ouriço azul.

O pior é que a parte respeitável fica mesmo por aí, e os dois jogos baseados na série de televisão (que por acaso tem alguma qualidade) atiram o Sonic e os seus amigos para a lama, e arrastam-no pelo asfalto até o deixar num estado de total desfiguração, abandonando-o por fim, prostrado na estrada como um indefeso animal atropelado por um camião numa via-rápida. Se a metáfora poderá ser um pouco extrema? Possivelmente. Mas o nível de desrespeito à memória dos bons jogos do Sonic já foi tão conspurcada, aletrada e destruída que pouco existe de positivo a apontar sobre ele.

Sonic Boom 01

Sonic Boom: Shattered Crystal

Para ser sincero, Shattered Crystal é de longe o menos mau das duas adaptações do cartoon. O primeiro exercício que temos de fazer para o jogar é esquecer por completo que estamos a jogar um jogo de Sonic, e por de lado as noções que temos de velocidade, diversidade de mundos, jogabilidade vertiginosa, testes aos nossos reflexos e afins. Shattered Crystal é um pseudo-metroidvania, mas um exemplo medíocre do género. O Sonic troca a velocidade que sempre lhe foi característica por uns feixes magnéticos que leh permitem baloiçar e destruir escudos. Tudo isto num ritmo e num setting mais reminiscente de Donkey Kong, em que substituímos os habituais speedruns por caças aos tesouros, pesquisando pelos níveis uma série de medalhas, medalhinhas e medalhões que nos permitam avançar na história. Mas com calma, salto ante salto, que isso do Sonic veloz é coisa do passado.

Os factores que salvam este Shattered Crystal de ser terrível, e o elevam ao patamar de medíocre é a compreensão de que o personagem só funciona bem no meio bidimensional. A Sanzaru Games compreendeu-o e bem, e permitiu-me nos primeiros vinte minutos de jogo ter alguma esperança para este título. É claro que esse facto aliado aos controlos competentes dos personagens criaram algum potencial para fazer algo decente com o jogo, e a diversidade de habilidades do elenco criaram a primeira oportunidade para a experimentação de metroidvania com Sonic. Mas infelizmente o resultado é verdadeiramente penoso por uma triste decisão do estúdio que é o constante e irritantemente presente backtrack que imputaram ao jogo. Para desbloquearmos níveis subsequentes temos de obter uma série de anéis, que apenas são obtidos através da rejogabilidade ad nauseam dos níveis que lhe precedem. E a rejogabilidade de níveis, usualmente associada ao completionism, e habitualmente optativa em quase todos os jogos dá lugar à obrigatoriedade de repetir cada nível até destrancarmos todos os sub-objectivos. Aborrecido? Sim, e muito, e uma pulhice conceptual que nos mata por completo qualquer boa-vontade com um jogo que tinha tudo para ser um jogo bom mediano.

Sonic Boom 2

Sonic Boom: Rise of Lyric

Um dos piores, senão o pior jogo que joguei no ano passado. Evoca em mim o pior da nostalgia, e não me refiro ao brilhatismo mnemónico dos jogos de 16 bits. Refiro o quanto este Rise of Lyric me fez lembrar a primeira geração de jogos tridimensionais, e a sua incapacidade (à época) tecnológica de resolver uma série de questões que foram hoje, felizmente, ultrapassadas.

Comecemos pela atroz câmara deste jogo. Para perceberem o meu relacionamento com ela, basta que vos descreva os meus sentimentos em relação a ela. Eu desejo ardentemente levar a câmara de Rise of Lyrics a jantar. Falar-lhe das minhas metas de vida, objectivos, sonhos, aproveitando uma ida sua à casa-de-banho para lhe despejar doses consideráveis de cianeto no prato e na bebida. Tendo o cianeto tomado efeito, levaria a câmara de Sonic Boom: Rise of Lyric até à rua, e enquanto o veneno surtia efeito aproveitava para pontapeá-la até que ela soltasse um último suspiro, ou lá o que acontece a câmaras mal-programadas quando cessam a sua existência.

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Sonic Boom: Rise of Lyrics é um medíocre jogo para 1996, e um péssimo jogo para 2014. Há tantas falhas técnicas (já para não falar nas mecânicas e conceptuais) que o cartão de visita dado pela Big Red Button Entertainment, o estúdio que o desenvolveu, é de tão baixa qualidade que envergonha qualquer game developer. E das duas uma, ou a Sega contratou o estúdio mais incopetente de sempre, ou qualquer estúdio indie teria a paixão, o coração e o talento para apresentar um melhor jogo do que este. Desde apresentar bugs e glitches completamente ridículos (que lembram em muito a postura recente da Ubisoft)  e que destroem por completo a jogabilidade, passando pela terrível câmara (vide o parágrafo anterior) que nos estraga por completo qualquer tentativa de saltar plataformas tridimensionais, transformando de vez o Sonic de um velocista exímio num mau platformer 3D do final dos anos 90, daqueles feitos em vão-de-escada com personagens tão interessantes quanto entregar a declaração do IRS.

O combate, a exploração e o próprio jogo mostram algum potencial (se esquecermos o passado do Sonic) mas tem uma das piores execuções de sempre. Cada salto é motivo de frustração e de raiva, com a câmara a desviar-se sei lá para onde e a termos de repetir saltos essenciais entre plataformas uma infinidade de vezes.

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O melhor:

Shattered Crystal: o potencial da jogabilidade e mecânicas de metroidvania, e a sua execução.

Rise of Lyric: os bugs e glitches têm contribuído para vídeos geniais no Youtube.

O pior:

Shattered Crystal: a repetição, o backtracking e o grinding, o setting (porquê o mundo de Donkey Kong em Sonic?).

Rise of Lyric: Péssima câmara, controlos disfuncionais, desenvolvimento desinteressante de todo o jogo.

Nenhum dos dois Sonic Boom são um jogo de Sonic. A única semelhança entre estes e os jogos que marcam a nossa memória é o simples e aleatório facto de que possuem um ouriço azul como protagonista. O risco tomado em tentar criar um metroidvania poderia ter funcionado se o estúdio não tivesse sido excessivamente despreocupado em impor um ritmo de jogo desajustado à série. Em relação a Rise of Lyric este é de longe o pior dos dois, e demonstra um total desrespeito criativo pelo personagem e pela franquia. Felizmente que a série de animação que deu origem a estes jogos é de longe melhor do que as suas adaptações a videojogo. Resta-me deixar um pedido: será que a Nintendo pode adquirir a licença do Sonic e entregar o desenvolvimento de um jogo ao Mestre Myiamoto?

Sonic Boom: Shattered Crystal é um exclusivo 3DS e Sonic Boom: Rise of Lyric é um exclusivo Wii U.