Análise a Tristoy
Tristoy não é um thriller noir. Tristoy é um metroidvania e encontra-se à venda no Steam por 20 euros menos um cêntimo.
Pontuação: 8.7/10.
Caros leitores, como vocês sabem, e nós também – sabemos todos – a linha que separa uma análise de uma não-análise é recta, grossa e bem-definida. E o que estão a ler não é uma análise; aqui e ali até pode parecer que sim, mas não vos vamos mentir: não é.
Eu gosto que os meus textos sobre jogos reflitam esses mesmos jogos, que lhes absorvam perfeitamente (ou tentem) a essência, que os incorporem; que se sinta o jogo no tecido do texto, não só no conteúdo mas no estilo, na estrutura; que haja um bocado do jogo retratado tanto nas palavras escolhidas como na gramática, nos fios do pensamento. Para mim, um bom artigo de crítica, escrito e não só, faz isso. Um texto que “absorva perfeitamente a essência” de um jogo mau, é um texto mau. E esta “análise” (“pseudoanálise”) para mim está no ponto.
Pseudoanálise a Tristoy
(Também) gosto de perder tempo a tentar decifrar o que correu mal num jogo, como um médico legista à volta de um cadáver. No caso de Tristoy o que correu mal é óbvio. “Difícil” é uma palavra com muitos sentidos – se eu disser que jogar xadrez é difícil, vocês, concordem ou não, darão um determinado sentido à palavra “difícil”, mas se eu disser que jogar xadrez com peças de chocolate numa tarde de verão é difícil, vocês darão outro. Não é fácil jogar Tristoy neste último sentido, (e em muitos outros, mas destaquemos este).
Dizia eu que o que correu mal é óbvio, e volto a dizê-lo: a lista completa de defeitos pode ser enorme, menos óbvia, mas aquilo que nos salta primeiro à vista, que nos bate na cara como uma chapada, não tem muita discussão possível: não é fácil jogar Tristoy; e num jogo isso é, por defeito, um defeito.
Pseudoanálise (à Detetive) a Tristoy
(Voz rouca, à filme noir) um bom mistério, um mistério interessante, exige tempo e paciência; as pistas em vez de nos darem respostas imediatas fazem-nos primeiro levantar mais questões. Já vi muitos casos estranhos ao longo da minha carreira de médico legista, mas nunca tinha visto nada assim – “Originally, Tristoy was planned to be a visual novel” – e assim começava o texto dos autores de Tristoy, que tinha à minha frente; “Tristoy has around 20k words of dialogue which are all connected”. Proferi profanidades, e acrescentei: “porque é que o jogo insiste tanto em ter diálogos?”; estávamos presos, eu e o meu avatar: o meu avatar estava num colete de forças, ou algo parecido, e eu estava preso num ecrã de diálogos que não parecia ter fim – “porquê, se não acrescentam quase nada nem à história nem ao universo em que esta se desenrola?”, continuei a frase deste modo, algum tempo depois, quando uma esfinge matou o meu avatar pela segunda vez, sem aviso, com os seus olhos-laser, depois de um longo diálogo. O meu avatar era um homem, um príncipe; o artista que pintara o seu retrato discordava: era uma princesa; mesmo depois de escapar das correntes, meu avatar continuava num colete de forças.
Quem tinha preso o meu avatar? (Voz rouca) não sabia. Apenas sabia o seu nome – era uma mulher, roxa, que abanava muito as coxas; uma animação pobre, de uma família de animações pobres, vindas de um jogo pobre. Não sabia porquê também.
Outro ecrã de diálogo. A esfinge não me matou dessa vez. O ecrã tinha-me dado várias opções: se eu escolhesse uma opção (“let me pass”, algo do género) podia passar imediatamente, mas se escolhesse outra tinha que sofrer vários minutos de diálogo e responder a várias adivinhas para passar; se respondesse mal, a esfinge matava-me com os seus olhos-laser.
Sabem que mais? Há muito amor aqui; quem fez o jogo esforçou-se imenso, acredito, a Uniworlds Game Studios está de parabéns, porque fazer jogos é complicado e frustrante, é um inferno até: mas isso não é suficiente; este jogo custa dinheiro. Não há desculpa.
Há arte. Matar jogadores de forma arbitrária e quase aleatória é uma arte; uma arte só equiparável à de planear a dificuldade de modo a que os jogadores aprendam eficazmente: são dois lados de uma só moeda. Porque mesmo os criadores de jogos que tomam más decisões, sem bons critérios, mesmo esses, desses, poucos chegam ao “quase aleatório” sem esforço, sem talento – Há mérito, há arte. Como ensinar ao jogador que deve evitar bolas de fogo? – Tirar pontos de vida ou morte instantânea? Morte instantânea; senão os jogadores não regressavam a um checkpoint que está duas áreas atrás, áreas essas que estão vazias, separadas por loading screens.
Aprender não envolve experimentação. Aprender é uma coisa binária. Ou assim pensam os criadores de Tristoy.
(Voz rouca) mais à frente, as bolas de fogo não matavam, só tiravam vida; mais à frente o mesmo monstro que cuspira bolas de fogo ao morrer, já não o fazia. Era tudo tão estranho, tão aleatório; quase aleatório. Os cenários eram de tons verdes e vermelhos. As imagens eram tão estranhas como o comportamento do meu corpo; as teclas eram estranhas; para ir para o lado tinha que dar um salto; não percebia nada. Ouvi um grito.
Escrevi mais acima que jogar Tristoy era como jogar xadrez com chocolate (numa tarde de verão) e ainda não expliquei porquê.
(Voz rouca) ouvi um grito; vindo de um além; alguém ria-se, aos berros… nos meus headphones.
Tristoy é um jogo de co-op; não há modo single-player. Não considero este artigo uma análise por vários motivos; um deles é que não cheguei ao fim de Tristoy, nem nunca chegarei.
(Voz rouca) a outra pessoa ria-se porque me tinha visto morrer outra vez; o meu avatar estava parado numa plataforma, em frente a outra plataforma, que girava; a caixa de colisão de um dente de metal roçou a caixa de colisão do meu avatar, que morreu, apesar da distância a que se encontrava do objecto.
Visto que jogar no mesmo PC requer um comando, nós, eu e a pessoa que jogou comigo, achámos melhor ligar-nos via Steam. Como é norma, o jogo oferece uma opção de convidar os amigos do Steam, mas essa opção não está a funcionar na versão final do jogo.
Decidimos então experimentar alternativas fora-da-caixa; aquela que resultou foi: entrar em jogos desconhecidos, com jogadores aleatórios; imaginámos que se ninguém estaria a jogar o jogo, que o sistema havia de nos juntar.
Tínhamos acertado.
E termino assim, de repente.
Pontuação: 8.71/10.