As 50 mil sombras do labirinto

Foi em 2008 quando joguei pela primeira vez ao Shin Megami Tensei: Persona 3. Confesso que gostei tanto do jogo e teve um impacto tão positivo na minha visão dos JRPGs que meses depois estava a comprar e a (re)jogar o Persona 3 FES, uma versão melhorada do original, com extras e o novo epílogo The Answer, que adicionava mais 30 horas de jogo às mais de 100 do original. Um ano depois, em 2009, chegava o Persona 4 à minha colecção na prateleira, tão divertido como o anterior, mas sem o mesmo impacto e aquele efeito surpresa que o P3 teve. Neste momento olho para as versões Portable e Golden dos dois jogos na PSN e tenho vontade de os (re)comprar para voltar a jogar saudosamente na minha Vita. Foi este o impacto que os dois jogos da Atlus tiveram sobre mim e como poucos outros tiveram.

Eis que não surge novamente essa mesma Atlus em 2014, em jeito provocador e descarado para com os fãs da série, com um título que junta o elenco dos dois jogos numa só aventura. O isco perfeito para aqueles que olham para trás com saudade. No Japão existe um inglesismo chamado fan service. Uma expressão que significa “agradar aos fãs” e que tem vindo a ser interpretada mais frequentemente em contextos sexualizados, reduzindo conceptualmente a própria significação da palavra. Neste caso Persona Q: Shadow of the Labyrinth personifica, sim, a verdadeira acepção do termo fan service. É um título feito para agradar aos fãs ou aqueles que já conhecem a série e, confessamente, menos inclusivo para quem não a conhece.

É do ponto de vista de um fã que esta análise é escrita.

PersonaQ5

Apresentando-se num pacote completo de dungeon crawling na primeira pessoa ao estilo de Etrian Odyssey (outro título da Atlus) e com as suas personagens “reduzidas” a versões chibi, Persona Q junta o elenco dos dois jogos aos recém-chegados Zen e Rei em Yasogami High – o setting de Persona 4 – onde estranhos acontecimentos se estão a desenrolar durante um festival escolar e que vão levar o nosso grupo a percorrer uma série de labirintos dentro de atracções desse mesmo festival. Ao começarmos a aventura podemos escolher jogar da perspectiva dos personagens de Persona 3 (P3) ou de Persona 4 (P4) – escolhi as personagens de P3, obviamente por ser aquele que tem o maior valor sentimental para mim. Esta escolha vai determinar o nosso protagonista e influenciar a nossa experiência e visão no desenrolar da história.

PersonaQ6

Neste jogo passamos a maior parte do tempo a percorrer e a combater em labirintos, a desenvolver relacionamentos entre os nossos personagens e a fundir Personas, necessariamente por esta ordem. Ele não tem o subtítulo Shadow of the Labyrinth em vão. Antes de entrar num labirinto é preciso escolher uma equipa de 5 personagens e equipar cada uma com armas, armaduras, acessórios e uma subpersona. Em jogos anteriores mudar de persona era uma habilidade exclusiva do protagonista, mas em Persona Q todos os personagens podem escolher uma subpersona para além da sua persona principal – isto adiciona uma flexibilidade a todos os personagens que não havia previamente. Com a subpersona certa o que é normalmente um personagem físico como a Aigis pode-se tornar também num healer, ou podemos até optar por reforçar as suas habilidades de combate, tornado-a mais eficaz. Para além disso as subpersonas dão um bónus ao HP e ao SP que se reflecte em combate, e com a subpersona certa uma personagem que é normalmente frágil e que quereriamos manter na linha de trás pode passar para a frente. O combate mistura elementos de Etrian Odyssey, como o posicionamento do nosso grupo na linha da frente ou de trás – na linha da frente é onde queremos colocar os membros da equipa com mais vida e que conseguem dar mais dano em corpo a corpo, e na linha de trás é onde queremos colocar os membros mais frágeis, que normalmente atacam à distância com feitiços ou armas de longo alcance, e elementos de Personas anteriores, como a existência de forças e fraquezas ligadas a Personas e monstros, que podem ser exploradas para maximizar a eficiência dos nossos ataques – não só atacar um monstro fraco contra fogo lhe dá dano extra como coloca o personagem que fez o ataque num estado de Boost, garantindo que ele age antes de toda a gente no próximo turno e reduzindo o custo da sua próxima habilidade para zero (tendo ainda a probabilidade de activar um Rush Attack ou um All-Out Attack). Conhecer o adversário (apelidados de Shadows) que enfrentamos é crucial para ultrapassarmos os combates com sucesso, e felizmente o jogo mantém um registo das habilidades, forças e fraquezas que foram executados sobre ou por um inimigo após o enfrentarmos, fazendo com que queiramos enfrentá-los e atirar-lhes com tudo o que temos para cima até termos essa lista completa – a minha veia completiva fez com que fizesse isto para cada tipo de Shadow novo que apanhava ao longo do labirinto.

PersonaQ2

Percorrer os labirintos torna-se fastidioso, principalmente porque o jogo envolve uma grande quantidade de backtracking, mas há grande mérito no seu design. A possibilidade de podermos desenhar nós próprios o mapa do labirinto no touchscreen da nossa 3DS é um toque de mestre – trouxe-me de volta aos tempos de miúdo em que joguei ao velhinho Eye of the Beholder 2: Legend of Darkmoon, em que tinha de desenhar o mapa do labirinto em papel quadriculado para não me perder. Desenhar o mapa do labirinto que percorremos é uma característica já vem de Etrian Odyssey que muitos apreciarão (como no meu caso, que gosto de passar o meu tempo de dungeon crawling a desenhar um mapa por onde estou a passar) mas que alguns jogadores poderão talvez não apreciar, sendo capazes de preferir um mapa que registe tudo automaticamente sem terem que o desenhar ou tomar nota de cada um dos pontos de interesse que encontram (o mapa oferece a opção de auto-fill para se preencher automaticamente, mas não regista paredes, portas, escadas, baús de tesouro, etc.). É digno de notar que preenchermos nós próprios o mapa pode ajudar (e bastante) a desvendar alguns puzzles dentro dos labirintos – podemos tomar nota de passagens secretas ou de um local interessante que podemos querer assinalar com uma nota para podermos lá voltar mais tarde. Dentro dos labirintos somos assolados não só com os já esperados random encounters (que são anunciados através de um indicador no canto inferior direito no nosso ecrã que vai de verde a vermelho de acordo com a proximidade de termos um), mas também nos deparamos com FOEs no mapa. FOEs são inimigos poderosos com origem também em Etrian Odyssey que são visíveis no mapa e devem ser evitados a todo o custo (só devem ser enfrentados quando o grupo já estiver bastante mais forte do que quando o encontram pela primeira vez).

PersonaQ3

Visualmente os personagens são todos facilmente reconhecíveis nas suas versões chibi, e a sua aparência ajuda a transmitir a ideia de estarmos a jogar um spin-off para os fãs que é um pouco mais bem disposto que os seus episódios predecessores. O austero Zen e a bem-disposta Rei são personagens interessantes, que conseguem vencer principalmente devido às suas personalidades opostas, mas que empalidecem um pouco quando colocados ao lado do forte elenco que já conhecemos. Deve-se notar que os social links dos jogos anteriores (que eram necessários para a fusão de personas) aqui não estão presentes e que os relacionamentos em Persona Q desenvolvem-se através de pequenos eventos apelidados de Strolls. A interacção entre personagens em Strolls, em combate ou durante a exploração de um labirinto é extremamente divertida. Poder ver a reacção de membros destes dois grupos que nunca se tinham encontrado ou conhecido anteriormente, mas que têm tanto em comum é um dos pontos que mais consegue vender este título – um dos meus momentos preferidos está na reacção do grupo de P3 em reconhecer tão rapidamente a orientação sexual de Kanji e agir com perfeita normalidade a isso, dando origem a conversas engraçadas e empáticas (potencial spoiler – para quem não jogou P4, Kanji é o típico “bad boy delinquente que se veste de preto, usa caveiras, picos, correntes e se olhas para ele de lado levas com um murro na venta” – e é também um homossexual que julga que ainda está “fechado no armário” e se esforça por não sair, quando na realidade as portas já estão escancaradas). A música é brilhante, envolvente e variada, trazendo de volta clássicos como como o simples mas profundo Aria of Soul (o tema de fundo do Velvet Room), remixes de temas anteriores como o jazzy Paulownia Mall ou temas novos como o excelente Light the Fire Up in the Night (a música de background durante o combate em random encounters) – cheguei a ficar com este tema na cabeça durante dias. O voice acting em inglês está muito bom e conta com a maioria do elenco original que dá a voz aos mesmos personagens no P3 e P4 – é bom ouvir essas vozes novamente.

PersonaQ4

A luz: É um jogo Persona e um excelente spin-off na série. O combate é desafiante e recompensador. A música é espectacular. Para um fã, ver estes personagens juntos é quase um sonho tornado realidade. Desenhar mapas de labirintos enquanto os percorremos é divertido.

A sombra: Andar para a frente e para trás nos labirintos eventualmente torna-se enfadonho. Deixa de parte quem não conhece já a série.

No seu próprio mérito, Persona Q: Shadow of the Labyrinth já é por si só um dungeon crawler extremamente sólido e divertido – mesmo para quem não conheça a série. Para quem conhece e gosta, o jogo é então elevado para um patamar quase divino, tornando-se numa oferenda absolutamente deliciosa para os fãs. A profundidade dos personagens, os visuais e o som, o combate – está tudo “lá”. O conceito de explorar labirintos armado de “papel e lápis” virtual é um toque simples mas genial (e continua tão divertido como eu me recordo). Percorrer os labirintos começa a tornar-se aborrecido quando estamos no nosso décimo backtrack, mas isso é um mal menor que já era esperado num jogo do género. Aconselho vivamente este jogo a quem gosta de dungeon crawlers e de JRPGs (aos fãs não preciso de dizer nada). Se ainda não jogaram a um jogo da série, este não é o melhor jogo para começar – Persona 3 e/ou Persona 4 são bem melhores opções.

Persona Q: Shadow of the Labyrinth é um exclusivo Nintendo 3DS.