Um dos perigos de se ser “imprensa especializada”, no caso aqui do galinheiro, imprensa especializada em videojogos, é, na minha opinião, cair-se num solipsismo diegético e virar “pescadinha de rabo na boca”. Por outras palavras, incorre-se no risco de “falar de jogos por falar de jogos”, mais ainda, “porque se tem que falar de jogos” e desta feita não ser capaz de expandir quer o campo de discurso, quer os horizontes da acção. A tensão entre “o que é nosso” e o que “não é” é transversal e largamente disseminada entre os vários agentes culturais, evidenciando a necessidade de que estes reflictam sobre a sua identidade e o que é que esta implica em termos prácticos e conceptuais. Coesão e selectividade temáticas fazem parte do processo natural de produção de conteúdos, contudo, mal não faz que aqui e ali se saia da “nossa praia” e experimente outras águas, algo que por estas bandas se vai fazendo, não raras vezes. No nosso caso, penso que posso falar não só a título pessoal mas também em nome do Rubber Chicken, mais do que um assunto único e preferencial os jogos são um fio condutor, um mote que nos permite expandir sobre as mais diversas áreas, de acordo com gostos e aptidões particulares cultivadas. Da mesma forma que acredito que é positivo alargarmos o espectro de assuntos que abordamos nos nossos artigos e notícias, julgo salutar olhar para a forma como outras áreas abordam aquele que é o nosso fio condutor. Por exemplo, ver como a literatura ou o cinema têm tratado o tema dos jogos em geral e dos videojogos em particular.
Em Janeiro deste ano, assinalou-se o trigésimo aniversário da publicação do romance de ficção científica Ender’s Game da autoria de Orson Scott Card, galardoado com o prémio Nébula em 1985 e com o Hugo em 1986, na categoria de melhor romance, cuja leitura recomendo. Esta obra nasce da expansão de um conto publicado em 1977 que, segundo o autor, inspirando-se ainda na corrida espacial das superpotências mundiais, visava explorar a ideia de experiência, orientação e competição em gravidade zero. Origens humildes para uma história que acabaria por estar na base de um franchise – com presença na literatura, comics, videojogos e mais recentemente cinema – que já rendeu umas quantas gold coins. No entanto, não são a sua rentabilidade ou o cenário, ainda que fascinante, que me interessam. Há já algum tempo que queria escrever sobre um ou dois aspectos da história de Ender’s Game, pois em 1985 (ano do Commodore Amiga e da Sega Master System) Orson Card traz para o plano da narração o papel dos jogos, videojogos e simulações em realidade virtual na formação e na manipulação das crianças, ao serviço de um estado militarizado. Ter consciência desta cronologia permite perceber que muitas das questões que hoje se colocam não são novas, antes, acompanham a indústria dos vídeo jogos a bem ver desde que esta existe.
Quando uma nova realidade se apresenta à sociedade imediatamente surgem prós e contras, bem como arautos das virtudes e profetas da desgraça. Questionamento, aceitação e rejeição fazem parte do processo de integração das novidades que implica a actualização do cânone cultural e a passagem da cultura de nicho para a cultura dita mainstream. O facto de que desde a sua origem os videojogos se encontram no centro de várias discussões, académicas, formais, narrativas etc, é um testemunho da vitalidade, permanente novidade e plasticidade do género.
Há 50 anos, uma força extraterrestre conhecida como os Formics atacou a Terra. Morreram [dezenas de] milhões. Apenas através do sacrifício do maior dos nossos comandantes conseguimos evitar a nossa completa aniquilação. Desde então, a preparamo-nos para o seu regresso. A Frota Internacional decidiu que as crianças mais inteligentes do planeta são a nossa melhor esperança. Educadas com jogos de guerra as suas decisões são intuitivas, peremptórias e destemidas. Eu sou um desses recrutas.
Esta citação (numa tradução minha muito pouco cuidada, diga-se) foi retirada do início da adaptação para cinema, com o mesmo título, escrita e realizada por Gavin Hood, estreada em 2013. Caso não se tivesse colocado a referência, seria fácil imaginar que este seria o solilóquio inicial de qualquer jogo de ficção científica e que, em breve, estaríamos a bater em bichos grandes, porcos, feios e maus num qualquer título futurista, independentemente do seu tipo. Isto acontece simplesmente porque a ficção científica é uma gramática comum partilhada por vários meios, sendo que cada um deles contribui à sua maneira para a evolução do género, numa relação bidirecional. Podemos olhar as obras de ficção como case studies onde hipóteses experimentais ganham forma e sentido e que, por isso, nos permitem reflectir sobre questões cuja execução num plano realista se revelaria impraticável. A ficção ganha um teor ensaísta, com a vantagem de ser vendida ao público como entretenimento e portanto mais facilmente consumida e assimilada.
Ender’s Game, na sua formulação narrativa e fictional, contribui para a discussão sobre a aplicação efectiva dos videojogos e simuladores, partindo de um exemplo práctico. Como é natural, não apresenta respostas, mas fornece pistas de reflexão enquadrando-as num ambiente controlado. Mais do que um debate teórico, o recurso a case studies como este permite ancorar a reflexão e deduzir noções.
A obra apresenta uma visão peculiar acerca dos jogos, estes deixam de ser um instrumento de diversão para, controlados pelas chefias militares, assumirem um papel fundamental na formação, análise e avaliação de crianças e jovens. Há uma subversão dos modelos tradicionais. Mediante a sua institucionalização, aquilo que habitualmente é relegado para a esfera do privado, lúdico e acessório, revela-se como sendo um instrumento central ao serviço de um objectivo muito concreto: formar uma casta de comandantes capazes de no momento reagir e decidir, pensar estrategicamente, mesmo sob a pressão de um embate bélico. Trata-se de um modelo nitidamente militar semelhante ao que hoje prolifera quer sobre a forma de jogos de guerra e exercícios militares amplamente recriado em mil e uma histórias, quer sobre a forma de simuladores. Por outro lado, o jogo, em virtude da sua imersividade natural, é visto e utilizado já não como meio, mas como ambiente de teste e interacção. Recorrendo a uma tecnologia superior à que conhecemos, o jogo perscruta a mente do candidato, adaptando-se a ela, explorando-a e forçando os seus limites.
À parte: devo admitir que seria interessante e ligeiramente assustador jogar algo que se adaptasse à minha mente, com um guião mínimo e sem qualquer limite, em constante mudança. Seria também o sonho de qualquer psicanalista, à maneira de um teste de Rorschach virtual. O Freud provavelmente molharia a roupa interior.
Afastando-nos das questões que o universo distópico de Ender’s Game levanta, gostaria de salientar apenas o enfoque didático que ali se confere aos videojogos, realidade que poderia ver-se mais difundida na cultura contemporânea. Quantas vezes não ouvimos pessoas afirmar que aprenderam inglês por causa dos jogos, ou que se interessaram por áreas tão diferentes como a literatura, a engenharia ou as artes gráficas, até mesmo a música, porque os videojogos fizeram despertar em si esse potencial? De facto, relegar para segundo plano, desencorajar e denegrir uma realidade apenas porque não a compreendemos é contra producente e um desperdício de potencial. Creio que os jogos vieram para ficar, não como realidade unívoca, mas como uma das hipóteses, cujo apelo e a adesão de alguns sectores da sociedade é inegável. Não quero com isto afirmar que se tem que abandonar o que até agora se fez até aqui para adoptar os jogos como o nosso método de ensino, apenas que é necessário integrar e dar uso àquilo que estes têm de bom.
Um outro aspecto que desperta a minha atenção é a manipulação de um interface virtual levando a que sob a pretensa de se estar a correr uma simulação, se estar de facto a travar a guerra e, em última análise, genocídio ao estilo “I came here like a death star” (podem comparar aqui e aqui). É o plot twist da obra (peço desculpa pelo spoiler, mas sejamos honestos, o filme já saiu há dois anos e o livro há trinta) mas evidencia a linha que separa o real do virtual, aquela que com o avançar da tecnologia cada vez se torna mais ténue. Demonstra também um dos perigos dos jogos, que também os há, o da subversão negativa. Cada vez mais, mais que um meio ou instrumento, os jogos são um ambiente com a capacidade de focar integralmente a atenção dos jogadores, cingindo o imput sensorial àquilo que o jogo fornece, como por exemplo com os sistemas oculus rift e semelhantes. Como qualquer ambiente, este pode ser poluído por factores internos e externos. Os factores internos têm a ver como a forma como o jogo foi desenvolvido (a este respeito recomento este artigo da Alexa Ramires), com os seus objectivos e os valores que marcaram a sua produção. Os factores externos, mais complexos, são o uso que se faz desse ambiente, a nível autónomo e heterónimo. Ender’s Game permite-nos pensar sobre a forma como a manipulação de um ambiente virtual pode facilmente passar despercebida ao jogador. Contudo, é necessário realçar, a partir da história, que o logro está nas acções humanas e não no jogo ou simulação. Os jogos, videojogos e simulações têm um valor intrínseco e outro que recebem por participação, interno e externo. Ender’s Game coloca o ênfase na acção humana e não no ambiente virtual em si. Creio que este ponto é essencial, pois, voltando ao plano do real, reconhecendo que há produtos cuja natureza parece corrompida desde o primeiro momento, de forma alguma podemos desresponsabilizar quer os que jogam, quer quem controla o jogo das suas acções. Se há culpa, é das pessoas.