– Achas?
– Sim. Numas coisas parece o mesmo jogo, noutras não; é familiar mas sentes que é uma experiência nova.
– Nisso sou capaz de concordar contigo.
Levei o copo à boca.
Convidaram-me a experimentar uma build provisória de Bloodborne a portas fechadas.
A primeira vez que joguei Darksouls, passei duas horas no nível tutorial.
Telefonei a um amigo meu.
– Já agora, Zé: vou chamar-te “Zé” no artigo. Pode ser?
– “Zé”?
– Sim.
– Não podia antes ser “Zé”?
– Não, gosto mais de “Zé”. O que é que achaste da dificuldade?
Voltei a pegar no garfo; a mão direita segurava na caneta.
– O jogo é tão difícil como os outros três [Demon Souls, Dark Souls, e Dark Souls II]; se calhar até é mais.
– Também achei.
– Mas tem uma curva de aprendizagem mais suave. Não há block; acho que é por causa disso.
– Como assim?
– Nos outros és quase forçado a bloquear. Aprendes a fazer block desde cedo; só te preocupas em dominar o dodge depois do block. Neste aqui só tens o dodge; ensinam-te primeiro a usar o corpo, a mexeres-te.
– Concordo com o que disseste, mas não usaria esse argumento aqui.
Zé é um fã da série Souls; eu não. Zé considera-se um “hardcore gamer”; eu não.
Trouxe-o comigo. Sentaram-nos em dois cadeirões, ofereceram-nos café, deram-nos um comando, e ligaram a TV; jogámos ora um ora outro.
– Concordo com o que disseste, mas não usaria esse argumento aqui. A curva deve-se à AI [inteligência artificial].
– Também. Estás sempre a aprender porque o jogo adapta-se a ti.
– Os monstros nos outros são um bocado burrinhos. A AI tem melhorado de jogo para jogo, mas desta vez deu salto enorme.
– Sim, nem se compara. Lembras-te do monstro do machado? Quando recuou?
– É disso que estou a falar. Foste-te embora e ele não te virou costas; em vez de caminhar para à sua posição inicial, recuou uns passos virado para ti, em passos lentos; sem te perder de vista.
– E o outro? Se eu tinha a foice fechada, ele rodopiava com o machado: apanhava 360º à sua volta em curta range; se a tinha aberta, dava um golpe vertical com braço esticado: o intervalo que apanhava era menor, mas a range era maior.
Zé disse a verdade, mas não toda a verdade.
Tentámos matar o monstro quatro vezes. Usámos três táticas diferentes. O monstro também.
E pouco antes de morrer, usou ataques que ainda não tínhamos visto.
Os monstros em Bloodborne estudam o estilo de combate do jogador. Reorganizam a ordem dos seus ataques, os intervalos entre ataques, o tipo de ataques, e no geral atacam mais. Ao contrário dos “outros”, não “avisam”; os monstros atacam espontaneamente; improvisam.
O avatar é mais rápido, para equilibrar; desvia-se com mais facilidade. Cada micro-segundo importa.
Quando vimos um grupo de monstros pela primeira vez, na cidade vitoriana em que o jogo começa (e talvez se passa), ficámos espantados: caminhavam todos no mesmo sentido; seguiam-se, como uma matilha.
– O jogo tem uma AI que é tão boa que sentes que acabas sempre por aprender qualquer coisa quando morres.
– Não senti isso nos Dark Souls.
– Pois não. Morria por distração minha; sabia o que tinha que fazer, mas não tinha feito isso. Não há nada de novo a registar.
– A única forma de estares um passo à frente dos monstros é ires mudando de… Desculpa.
Cuspi uma espinha para o guardanapo.
– Este bacalhau é uma merda.
O faux-medieval gótico, foi substituído por um faux-vitoriano gótico.
O jogo está mais “decorado”, cheio props, caixões, caixas, estátuas, tralha; mas continua vazio. Em King’s Field IV, a cidade não é uma cidade. Em Dark Souls II, os castelos não são castelos.
A arquitetura em Bloodborne é igualmente estranha, quase antinatura; continua-se a sentir um vácuo: não estamos a visitar um espaço real, estamos presos num pesadelo.
– Um pesadelo?
– Não sentes isso?
– Mais ou menos.
– Quando morres volta tudo ao lugar de antes, cada monstro ao seu canto. Revives tudo. Parece que estão a assombrar a cidade.
– E o sangue?
Quanto maior o kill count, mais ensanguentado está o protagonista. O senhor que estava connosco garantiu-nos que se sobrevivesse tempo suficiente, acabaria vermelho da cabeça aos pés.
– As cores também contribuem para o nightmare fuel.
– Sim senhor. É um jogo bonito.
– É, sim senhor.
– Mas não é next-gen.
– Não é, não senhor…
As pessoas como Zé usam o termo “next-gen” para falar de computação gráfica.
– Não é, não senhor… mas também não precisa de ser.
– Pois não.
As pessoas como Zé estão cansadas de simuladores de luz, e de partículas, de animação facial foto-realista, e de jogos medíocres.
Depois de jogarmos Bloodborne fomos almoçar.
– Os outros são como sacos de farinha. Abres o saco de farinha, e aquilo é só farinha.
– Estás a usar uma comparação manhosa porque sabes que não vou resistir, e que vou incluí-la no texto? Admite.
Ele fez que sim com a cabeça.
Fiz sinal ao empregado para trazer um copo de vinho.
– Um saco de farinha é só um saco de farinha. Estás à espera de encontrar farinha, e vais encontrar farinha.
Eu fiz que não com a cabeça.
– A história no Bloodborne está escondida aqui e ali, mas está mais presente no mundo de jogo; e está mais interessante. Pode não ser Shakespeare, mas abres o saco de farinha e não encontras só farinha, também encontras chocolates lá dentro.
– Sabes o que é que não é Shakespeare? Essa metáfora.
O empregado levou o copo vazio da mesa; deixou outro igual, cheio.
Pedimos a conta.
– Conclusão.
– Conclusão.
– Vais comprar?
– Vou. Tu?
– Eu não tenho Playstation.
– Se tivesses?
– Não sei. Dos quatro foi o que me “agarrou” mais. É um jogo que pune imenso, mas que dá mais em troca que os outros. Sabes o que é que me fez lembrar? O Hotline Miami. Estás sempre a morrer mas não sentes que estás a perder tempo.
– Também achei.