É muito fácil fazer “cair o Carmo e a Trindade” quando uma obra se alicerça na sua quase totalidade sobre outra obra. Começa-se a habitual conversa sobre o plágio e a inspiração, e qual área de demarcação dos dois, se homenagear e copiar são mutuamente exclusivos ou coincidentes, e quais as implicações éticas de cada uma das visões. Para tirar esta aura de cima deste artigo e dos parágrafos que aqui vão seguir há que dizer de imediato: Cities: Skylines é o SimCity que SimCity não conseguiu ser, e que a Maxis (pela sua infeliz extinção às mãos da EA) não chegará a fazer.

O mercado dos city-builing games tem um problema de nomenclaturas, e em muito nos lembra alguns hábitos tão portugueses de nomear quase todas as raparigas de uma família com Maria (que é coisa que aconteceu na minha família por exemplo). Entre City Life, Cities XL, Cities in Motion e este Cities: Skylines existe uma gigantesca complicação de que série pertence a que estúdio/editora. E os logótipos de quase todas (letras não-serifadas arredondadas) sobre fundo azul e uma cidade toda bonita lá ao fundo em nada vêm ajudar, criando uma confusão generalizada a quem tenta decidir em que jogo gastar o seu suado dinheiro. Portanto o que é que nos salva de comprarmos um dos piores jogos do género em detrimento de outros infinitamente melhores? A Galinha responde a esta dúvida de forma taxativa: após desenvolverem Cities in Motion (e Cities in Motion 2) os finlandeses da Colossal Order criaram este Cities: Skylines como um dos melhores do género, e é este o único da família-de-muitos-pais-com-City-ou-Cities-no-nome que merece aquisição.

cities_skylines_12-100536514-orig

Ter a percepção de que estamos enganados é uma sensação positiva se vier acompanhada de uma agradável surpresa. É que apesar de não estarem propriamente a “competir” no mesmo subgénero, ainda há duas semanas afirmei Tropico 5 como o melhor do seu género, o que não deixa de ser verdade. Pelo menos de forma parcial. Naquele micro-nicho de jogos de gestão urbana e política o jogo da Kalypso é rei e senhor, aliás, é ditador incontestado. Cities: Skylines vem ocupar outra fasquia, outro segmento, aquele a que todos nós facilmente apelidamos de jogos “tipo SimCity”, ocupando agora o espaço deixado vago pelo portento da Maxis, cuja última edição desiludiu mais do que agradou. Deixando espaço para que a Colossal Order aprendesse com esses erros e os suprisse, trazendo para o público o SimCity que todos queriam.

Mas o que diferencia Cities: Skylines do seu pai espiritual, ou de muitos outros jogos do género? A realidade é esta: quase nada. Skylines é o mais clássico que um city-building pode ser, não trazendo nada, ou quase nada de novo para a equação. Mas com uma pequena e fundamental diferença: o que faz, e que já foi feito dezenas de vezes antes por outros jogos, faz de forma apurada, afinada e perfeitamente interligada e equilibrada.

Posto isto há que perceber que as mecânicas presentes são todas extremamente simples, mas com aplicações complexas. Agrada-me a falta de tutorial que o jogo possui, limitando os parcos ensinamentos ao jogador com pequenas janelas de pop-up ocasionais que vão dando algumas dicas de controlos e pouco mais. Para tudo o resto temos de ser autarcas com as “mãos-na-massa”, fazendo crescer a cidade à medida da nossa visão e/ou das necessidades dos seus habitantes. No meu caso esta simplicidade e perfeita visualização da curva de aprendizagem materializou-se em cinco tentativas falhadas de levar as minhas cidades ao fausto desenvolvimento. Cinco foram as vezes que levei as minhas cidades a bancarrota e que decidi recomeçar o jogo do zero, com um terreno verdejante imaculado à espera da acção humana. Cinco foram as vezes em que a minha sensibilidade autárquica toldou o meu julgamento, e desequilibrei a balança entre o investimento e o crescimento natural. E cinco foram as cidades quer apaguei como um autarca divino que terraplana uma civilização sem qualquer dúvida que o abale.

2630636-cities070414_0033_layer-31

As cidades em Cities: Skylines têm uma das abordagens mais verdadeiramente orgânicas que pude ver num city-building game. A possibilidade de fazermos um zoom aproximado de cada casa e vê-la crescer, como se fosse uma microcultura sensível com as suas necessidades, e que vemos levedar do chão pela sua própria acção, com a profundidade de câmara habitual a criar um efeito dramático, quase como um diorama que vamos construindo ao longo de semanas e que se assemelha a um momento recortado da vida real.

A escala das nossas cidades respondem na perfeição ao buraco de amargura que SimCity nos deixou. Com um tamanho máximo de 36 km2, as nossas cidades podem tornar-se verdadeiras metrópoles que ocupam a imensidão do terreno visível. A decisão da Colossal Order de manter toda a nossa atenção focada numa cidade só justifica-se pela dificuldade de gestão que o próprio apresenta. O desafio já é grande o suficiente apenas com uma cidade para que nos tenhamos de multiplicar entre multi-cidades para construir o nosso desenvolvimento urbanístico.

Houve uma tremenda inteligência da Colossal Order e da Paradox em deixarem o jogo totalmente aberto a modding. É que a actual rejogabilidade e longevidade do jogo é virtualmente infinita, visto que a resposta da comunidade no Steam Workshop têm trazido uma série de novos mapas, novos edifícios, e uma série de equipamentos urbanos que complementam Cities: Skylines, tornando-o o mais “vivo” dos city-building games.

Pré-planeamento e uma abordagem metódica são o segredo de quase todos os city-buildings. Aliás deveria ser este o tom usado na gestão autárquica da vida real, não fossem uma série de constrições impedir o desenvolvimento das cidades, tendo a má-gestão camarária, usualmente, como maior factor. Mas planear com muitos “anos” de avanço a nossa cidade é meio-caminho para o sucesso. Entre definirmos logo com alguma dimensão e espaço os centros nevrálgicos da cidade, por onde passará grande parte do tráfego automóvel, até às multi-ligações viárias entre os diversos distritos da cidade. Numa certa altura dei por mim a pesquisar na internet algumas soluções existentes no nosso mundo para cruzamentos e rotundas, entroncamentos e uma série de formas arquitectónicas rodoviárias cujo grande princípio é o escoamento do trânsito. Cities: Skylines absorve-nos na gestão municipal, vicia-nos, e quando percebemos já muitas horas de tempo real enquanto a nossa cidade cresceu de um pequeno bairro residencial até uma espécie de Liverpool ultra-industrializada. E existe sempre um sentimento de pertença em relação à nossa cidade, a começar por um factor que pode parecer simples mas que faz uma gigantesca diferença para nós, jogadores/autarcas: podemos nomear a cidade e os diversos distritos que definimos nós mesmos, adicionando identidade a um jogo que tão bem soube criar as suas cidades de forma orgânica.

xtIlDXH

Como diz o ditado popular “não há bela sem senão” e Cities: Skylines tem dois pequenos “senãos”: a micro-gestão “martelada” que nos obriga a destruir manualmente os prédios abandonados. Então mas uma cidade tão orgânica quanto esta não o consegue fazer? Temos de ser nós, enquanto olhamos para a “bigger picture” a destruir um ou outro prédio devoluto? Parece-me que foi uma solução para entreter os jogadores que saiu completamente ao lado. E o segundo e último problema é o já habitual algoritmo de trânsito, em que os automobilistas parecem não preferir escoar o trânsito para vias paralelas e secundárias, e agem muitas vezes como Lemmings. Ainda assim e já que hoje é o último dia de Março digo sem problemas que este é para mim o melhor jogo do primeiro trimestre de 2015, e que fará, de certeza, parte do meu Top do ano.

O melhor: as mecânicas, o afinamento, o organicismo das cidades

O pior: o algoritmo do trânsito

Cities: Skylines assumiu com toda a justiça o patamar de benchmark para todos os jogos do género. Todos os game developers após o seu lançamento sabem exactamente onde retirar a inspiração para conseguir um jogo bem executado. É que sem inventar a fórmula Skylines conseguiu chegar até nós como o jogo que queríamos: equilibrado, funcional, divertido, inteligente e desafiante. É tudo aquilo que SimCity deixou de ser e que poderá nunca mais ter a oportunidade de o ser. Felizmente que temos substituto à altura.

Cities: Skylines é um exclusivo PC.