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Análise a Hotline Miami 2: Wrong Number

Disparo.

O chão enche-se de sangue.

Disparo outra vez. Mais sangue, agora também nas paredes.

Salto contra a porta, de costas, porque oiço passos do outro lado; viro-me, o homem que ia abrir a porta está caído no chão. Disparo. Não Disparo, na verdade; puxo só o gatilho; a caçadeira está vazia.

O bastão que o homem trazia está aos meus pés. Baixo-me, pego nele, caminho dois passos. O homem contorce-se, tem a cara tapada e as mãos cheias de sangue.

Ajoelho-me em cima dele.

Se Hotine Miami fosse um re…”; não se percebe nada, tiro a máscara da minha cara; se Hotine Miami fosse um remake de Taxi Driver (de Martin Scorsese), produzido por Nicolas Winding Refn e realizado por David Lynch, então Hotline Miami 2: Wrong number seria Pulp Fiction (Quentin Tarantino) produzido por Nicolas Winding Refn e escrito e realizado por Satoshi Kon“; explico-lhe; falo com delicadeza e devagar; acho que estou drogado.

Não há mais ninguém no prédio. Seguro no bastão de baseball com as duas mãos. Desfaço-lhe o crânio: bato uma, duas, três vezes; quatro; e a música parou.

Levanto-me.

“Também se sente um toque de Terry Gilliam”. Estava a falar sozinho, agora; sento-me num sofá.

Há um portátil ligado em cima deste; ao meu lado.

Ponho o portátil sobre as minhas pernas. Faço duplo clique no ícone de HM2 (Hotline Miami 2).

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Nice“, digo em voz alta; “I really like this music“; afinal falo inglês; parece que sim.

O protagonista de HM (Hotline Miami), eu, está a jogar a sequela de HM, num último andar de um prédio com trinta e dois cadáveres.

I’m here to tell you how to kill people; o protagonista de HM, eu, que também joguei HM, (lembra-se) lembro-me que o jogo abre com esta frase; segue-se um tutorial que viola a quarta parede; segue-se um jogo que continua a violar a quarta parede; é um jogo que sabe que é um jogo; mas não é cínico, não tenta ser irónico; a essência de Hotline Miami é que as “caixas” da narrativa encaixada não existem, não há quarta parede, nem quinta, nem sexta, nem nenhuma: não há dicotomia jogabilidade-narrativa, as duas coisas são uma só: é um jogo simbólico, metafórico, surreal, ou literal? o protagonista está louco, ou o universo de HM é que é estranho? O protagonista morreu ou não? Quem é o protagonista, o homem mascarado ou o homem do capacete? Do you like hurting people? Who is leaving messages on your answering machine? Where are you right now? Why are we having this conversation?

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Não sei.

Só sei que hoje é 3 de Abril de 1986, e que adoro a música de HM2; a minha cabeça abana sozinha, sem que eu lhe peça; não me consigo impedir de dançar.

Vou experimentar um nível.

Morri. Não no jogo. Na vida real.

Acho. Será que foi no jogo?

Estou vivo outra vez, é isso que importa. ‘Bora matar pessoas outra vez. Não cansa. Dava para fazerem mais um jogo destes, (três). Mas tenho a impressão que não vai haver um terceiro. Morri no jogo, tenho a certeza. O telefone fixo está a tocar. Ainda estou sentado no sofá.

Mas se eu morri no jogo, porque é que sou uma pessoa diferente? Eu não sou o protagonista de HM2; será que os protagonistas de HM2 são facetas de minha pessoa, e não um mero gangue de vigilantes? Será que sou eu que não sou real, que eu não existo e que sou uma faceta do jogador?

Oiço “corta!”.

Isto é um filme; também é um filme.

O criador do jogo é o realizador, está a filmar-me. Estava. As luzes desligam-se.

Ele fala com a minha colega; está a ser ironicamente misógino; mas para quê? Para chocar-me? Mostrar-nos que pode? Para comparar o homicídio à agressão sexual; equiparar os dois tipos de violência?

As luzes do set estão desligadas, mas o telefone continua a tocar. Equiparar a postura do jogador perante ambas? “It’s not real“?

Atendo. “Hotline Miami 2 continua a explorar o tema da desrealização“.

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Não oiço ninguém do outro lado da linha. A voz não veio do telefone.

A reação não é unânime desta vez. Há quem quem reconheça a familiaridade e dê um abraço ao jogo, e há quem lhe aponte o dedo por estar mais alto mas continuar uma criança, por ter crescido por fora mas não por dentro”.

O cadáver da última pessoa que matei está a falar. Tem cabeça de galo; o bico tem dentes; a expressão é maliciosa; continua: “Hotline Miami 2 é uma péssima sequela e uma excelente expansão. A apreciação depende do ponto de vista”.

Não falo nem me mexo.

Como sequela, o jogo não traz nada de novo à mesa; não se explica a si mesmo, não está interessado em conquistar novos jogadores, nem em conquistar o direito à sua identidade, ao seu estilo; à sua voz, que é tão gratuita como incisiva”.

Stop.

A cassete faz rewind.

Play.

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Tenho uma faca na mão e uma caçadeira às costas. Estou no Vietname?

Enquanto expansão, é impossível não recomendar”, explica-me o sargento que estava atrás de mim. “É uma expansão com mais conteúdo que o jogo original; mais personagens, mais música, níveis maiores, mais níveis, mais de tudo”.

Mas nem toda a gente gosta de “mais”.

HM tinha um tamanho ideal em tudo, para toda a gente – foi aclamado pela crítica e pelo público.”

HM2 é melhor que HM, mas é só mais HM. O design dos níveis é muito bom e são extremamente criativos, mas continuam a basear-se nos mesmos princípios e mecânicas.

Stop. Fast-forward.

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Play.

Estou sentado no sofá, outra vez.

Continuo sem perceber nada”.

Não há muito para perceber”, responde-me o galo.

Baixo meus olhos para o ecrã do portátil, e continuo a jogar. Ele racha-me a cabeça com um taco de golfe.

O realizador grita “corta” outra vez; “pausa para café, fazemos outro take daqui a dez minutos”.

Hotline Miami 2: Wrong Number está disponível para PC, PS3 e PS4. Analisada a versão de PC.