Tenho assistido com alguma perplexidade à discussão que tem surgido pela internet em torno da exibição de eSports em canais de TV, exponenciada e muito por declarações do Presidente da rede, John Skipper, e um dos seus apresentadores Colin Cowherd. A primeira questão que temos de perceber é se isto é uma discussão sério, se tem validade, ou se é, de alguma forma, uma não-questão. Para mim, para além de achar que este debate gira em torno de uma não-questão, fica também uma ideia prévia: alguns canais enveredarem por este caminho poderia ser extremamente prejudicial para nós, os jogadores. Porquê?
Canais de televisão são um negócio
Como quase tudo no mundo globalizado e capitalista em que vivemos, os canais de televisão são um negócio. E essa é a razão pela qual os programas que ocupam os lugares cimeiros dos shares televisivos diários são reality shows ou programas ligeiros cujo conteúdo – de qualidade debatível – agradam à massa popular que ainda se senta à frente da TV. Por alguma razão existem pouquíssimos programas/segmentos programáticos sobre videojogos em canais de televisão, seja nacional ou internacionalmente. E não é propriamente porque não existe público interessado neste conteúdo, mas apenas porque este público está deslocado da televisão, e tem as suas respostas mediáticas respondidas através da internet. Sem qualquer fundamento estatístico penso que é pacífico perceber que grande parte dos jogadores estão fora da demografia da audiência da televisão. E quando falo em televisão falo no acto mensurável pelas respectivas empresas de nos sentarmos em frente da TV e realmente ver o que “está a dar” em oposição a fazer download/ver em stream séries e filmes. São duas realidades diferentes que justificam a minha primeira premissa: os jogadores, na sua grande maioria, não são audiência televisiva.
Canais de televisão são um negócio perigoso
Como trintão que sou, tive, até à adolescência, apenas três hipóteses no que diz respeito à televisão. Ou via os dois canais públicos, ou via VHS alugados/gravados ou não via televisão. Não era um dos abonados do subúrbio lisboeta que contava com a emissão de canais pirata. O que significa que até à chegada dos canais privados e alguns anos depois com as emissões por cabo, que a realidade de pagar por emissões televisivas (os canais PPV (pay-per-view)) não existiam no léxico português. O que significa também que eu cresci a ver jogos de futebol (especialmente do meu Sporting) em canal aberto. A par do que acontecia “lá fora”, também cá em Portugal a lei da oferta e da procura falou mais alto, e após avanços da Olivedesportos em criar a SporTV, o primeiro canal PPV de desporto nacional, acabámos por ter o futebol (esse negócio que tanto dinheiro gera) a um sistema de espectador-pagador.
Ora, todos sabemos que os eSports sobrevivem num modelo de negócio paralelo, em que todos nos habituámos a assistir a campeonatos mundiais de Starcraft, DOTA 2 e LoL, gratuitamente por stream, seja pelo Youtube, Twitch ou qualquer outro serviço. E aqui o ónus da questão é a palavra “gratuito”, já que nós assumimos o não-pagamento destas emissões de acesso livre. Tal como o era o futebol, em canal aberto, de acesso gratuito, até que o dinheiro falou mais alto. E esta é uma das razões pelas quais temo as mãos gananciosas das grandes corporações de media: se perceberem os números de espectadores de campeonatos de LoL (quando vemos a banda larga global utilizada para estes streams ficamos assustados com a dimensão) e que queiram uma fatia do putativo dinheiro a ganhar. E como de base defendo o livre acesso a muitos conteúdos e este, é sem dúvida um dos que acho que devem permanecer free-to-watch. Ou é do meu esquerdismo assumido ou prefiro mesmo que o que é hoje acessível assim continue, sem a necessidade de se impor a lógica de espectador-pagador aqui também.
Canais de televisão são um negócio perigoso e têm de ser rentáveis
Já tinha referido antes a demografia dos telespectadores para definir que esta esfera é pouco intersectável com a esfera dos videojogadores. Dificilmente um canal de televisão, especialmente os PPV vão apostar em exibições de campeonatos porque pura e simplesmente não têm o seu produto (o canal) segmentado para este outro mercado (o dos jogadores). Mais uma vez, sem dados oficiais, acredito que a demografia dos assinantes da SporTV, por exemplo, representará em grande parte homens entre os 35 e os 50, que não são (regra-geral), como sabem, o segmento que assiste a campeonatos de videojogos via stream. O que significa que nenhum investidor quer perder dinheiro com este tipo de transmissões e com um nicho de visualizações residente na internet, dificilmente o início das transmissões dos campeonatos serão motivo aliciante aos jogadores passarem a ser assinantes de canais PPV.
Ainda neste ponto, há que lembrar que um hipotético canal destes funcionaria apenas com a união comercial e os direitos de transmissão exclusivas dos grandes produtores dos jogos mais vistos (Blizzard, Riot Games e Valve), o que por si só é negocialmente (e economicamente) improvável. A somar ao facto de que neste momento já existe muito dinheiro a correr com as transmissões deste conteúdo de forma gratuita na internet, em especial em plataformas como o Youtube e o Twitch.tv, o que nos relembra que dificilmente alguma corporação conseguiria ter dimensão suficiente para embater de frente com os dois gigantes proprietários dessas plataformas: Google e Amazon respectivamente. Neste “dog-eats-dog world” o cão maior costuma ter dentes mais ameaçadores que a raia miúda.
Gabriel Alves e Luís Freitas Lobo
Tenho de concordar com a postura dos apresentadores da ESPN, mas não pelas razões apregoadas. Se alguns dos canais de desporto escolherem iniciar as transmissões de eSports como algum recorrente, o maior erro que poderiam cometer era utilizar a “prata da casa”. É normal que alguém que está há vinte anos a fazer comentário de Basquetebol (p.ex.) tenha uma impossibilidade compreensiva em conseguir fazê-lo em relação a LoL ou DOTA 2. Basta pensarem nos gamers que conhecem e que nunca jogaram a nenhum dos dois: a realidade é que nem percebem o que é que se está a passar, e parecem perfeitos “bois a olhar para um palácio”. Eu já assisti aos nossos Miguel Tomar Nogueira e ao Frederico Lira a assistirem ao torneio de LoL do 1UP Gaming Lounge e bem o vi. Trinta anos de videojogos não lhes davam a mínima ideia do que se estava a passar. Começar emissões do género significaria contratar novos apresentadores, especializados em videojogos, que compreendam o sector como os habituais comentadores desportivos não compreendem. E para ser sincero nem têm obrigação de o fazer.
E no caso bem português, e à boa maneira nacional de poupar uns trocos, a SporTV poria de certeza esses poetas do desporto que são Gabriel Alves (autor de frases como “Remate rasteiro a meia altura por cima da barra!” e “Fica na retina um cheiro de bom futebol.» e Luís Freitas Lobo (autor de genialidades como “Slimani dentro da área está na sala de estar da sua casa.” e “Rio Ave a encher o meio campo de médios”) a comentar a LCS, e frases como “a bot lane da equipa roxa desloca-se longitudinalmente para a bot lane” seriam o prato da casa. O valor humorístico, esse, é como a MasterCard – “priceless”. O pior é que de certeza que nos quereriam fazer pagar por isso.