É um ponto de vista… Mas a tua vida não precisa de ser miserável para tentares ter a melhor espada de sempre num jogo, nem precisas de ser um teenager para gostar de Pokémon.

É hiperbólico, sinedóquico e ofensivo, eu sei. A verdade é que há mais cinzento do que preto e branco, e há muita gente em cima da linha que separa o ridículo do tolerável; mas há tanta gente do lado do ridículo, por outro lado, que sinto a necessidade de desenhar mais linhas na areia, por cima dessa.

Mas para isso tinhas de assumir que a tua verdade é absoluta, e que tens o poder divino de definir o que é, ou não, ridículo. Não?

Não. Nem tenho esse poder nem tenho que o assumir; o ridículo é sempre subjetivo. Este é o meu ridículo.

 

Quem é este Pokémon?

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É um adulto subdesenvolvido com quase trinta anos!.

…que é fã de Pokémon!

Eu tenho uma teoria que é: o Pokémon só tem fãs Pokémons; ou por outras palavras: os fãs de Pokémon são todos Pokémons. “Mas Isaque, o plural de ‘Pokémon‘ não leva ‘s’!”, gritam algumas pessoas ridículas no fundo da sala. Estão a ver? Só me estão a dar razão. E sim, estamos numa sala.

“Isaque, passei o Bloodborne! Sou o maior não sou?”.

E eu: “és, és o maior”.

Os meus amigos que não se ofendam com o que estou a escrever; não é sobre nenhum de vocês em particular, já são vários que me vêm pedir parabéns. Como se um jogo não fosse um jogo.

“Ganhaste um jogo. És o rei do mundo. Toma um biscoito”.

Hoje é dia 4 de Maio de 2015, e vamos falar sobre os pilotos da TAP.

Anteanteontem era 1 de Maio, dia do trabalhador; estava a escrever este texto com a televisão ligada.

Depois de uma peça sobre a greve dos pilotos da TAP, a pivot diz, num tom que evoca tragédias como o tsunami tailandês ou o 11 de Setembro: “esta greve dos pilotos é o tema da antena aberta de hoje. Já sabe que pode e deve ligar para os números 2179[…] ou 2179[…]. Estamos a contar com a sua participação!”; faz uma pausa dramática; “ligue e participe neste tema que tem agitado o país!”. Nesse mesmo momento, aparece no ecrã, em letras grandes: “GREVE TAP”.

Estão a ler um artigo num site de jogos. Podemos falar da TAP? Sim ou não? A resposta é “sim”, que já está escrito e já leram.

Mas é apropriado? A minha pergunta esconde outra: será que não abordar outros assuntos para além de jogos num site de jogos é desapropriado por questões de compartimentação – “jogos para um lado, não-jogos para o outro” – ou será antes porque grande parte do nosso (sites de jogos) público é inculto o suficiente para achar desinteressante tudo o que estiver para além dos seus hobbies?

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O tema deste artigo (e manifesto) é o “gamer chique”; mas para falarmos do “gamer chique” temos que falar primeiro do “geek chique”.

Abaixo a cultura geek.

A sério.

Alguém me explica porque é que onde quer que esteja a decorrer um torneio de Magic cheira sempre mal? Não é preciso ir-se à Internet para encontrar-se torneios de Magic; basta ter-se um cão de caça.

Abaixo a cultura geek. Não estou sozinho nisto. Abaixo o geek, e longa vida ao geek chique. “Ah, mas o Hulk luta contra o Iron Man e depois o Thor luta contra o Capitão América. E a Viúva Negra é a Scarlett Johansson; ela salta imenso naquele vestido apertado”. Não “abaixo o entretenimento geek“, não “as vitórias da cultura geek“; abaixo a cultura geek, e só a cultura geek.

Longa vida à inteligência dos geeks; abaixo a mentalidade geek.

Longa vida à artes geeks; abaixo a estética geek.

Abaixo o Pokémon.

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Longa vida aos livros de fantasia. Abaixo o Harry Potter.

Longa vida à banda desenhada. Abaixo a Lady Death, a Power Girl, e a Ms. Marvel.

Abaixo o Catan. Longa vida aos jogos de tabuleiro.

Game of Thrones é uma série de fantasia que é discutida por toda a gente, e em todo o lado, no ginásio, no bar, na sala de concertos – porquê? Porque é chique.

Porque é que há tanta gente vestida de desenhos animados para adolescentes nas Comic-Cons? Porque é que há lá tanta gente com excesso de peso? A coca-cola não é água.

Chique é tornedó com puré de ervilha e chardonnay; não são duas toneladas de frango frito num KFC bucket para comer com as mãos.

Aquele casal que foi jantar fora chega a casa e em vez de alugar um filme, liga a consola.

Aquele grupo de amigos está a jogar Cards Against Humanity ou Dixit na praia.

Aqueles artistas de rua estão no metro a jogar num tabuleiro, em vez de fazerem malabarismo; há uma pequena multidão à volta deles; as pessoas que vão para o emprego ou voltam para casa param todas para ver.

Longa vida aos RPGs. Abaixo o Dungeons & Dragons.

Longa vida aos videojogos. Abaixo o Call of Duty.

Mas eu passei o Bloodborne três vezes”.

Outro biscoito.

Mas eu passei o Bloodborne em duas horas”.

Mais um.

Mas eu passei o Bloodborne só com uma mão”.

Mas eu passei o Bloodborne a fazer o pino”.

Mas eu passei o Bloodborne de olhos vendados em cima de um monociclo”.

Fica com os biscoitos todos.

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Passos Coelho pergunta, regressando à greve dos pilotos na RTP1, parafraseando, como é que é possível que se pudesse fazer greve assim, desta maneira, depois do 25 de Abril, em regime democrático. Foi mais ou menos nesse momento que parei de escrever; “nem todos os sindicatos revelam sentido de responsabilidade” disse a jornalista em voz-off, a seguir ao discurso do primeiro ministro. A peça acaba, voltamos à cara séria da pivot e aos seus olhos esbugalhados, que nos diz: “Jerónimo de Sousa diz que a greve da TAP é culpa do governo”. E mudo de canal. Parei de escrever mas não foi para prestar atenção; foi para agarrar o comando.

O gamer chique não joga para ganhar. O gamer chique não faz grinding. O gamer chique não joga o mesmo conteúdo ad nauseam para ver algarismos mudarem num menu. O gamer chique sabe o que significa “ad nauseamporque a sua vida não se resume a jogos; o gamer chique é instruído; o gamer chique não é uma criança num corpo de homem ou mulher.

Porque é que o gamer chique não joga para ganhar? A resposta é simples: porque é que havia de o fazer?

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Porque é que o gamer joga? “Para passar o tempo” não serve; porque é que joga?

Por simulacionismo? Para observar paralelos entre sistemas reais e virtuais? Por narrativismo? Para aprender mais sobre si e sobre os outros? Ou para ganhar?

O que é que se ganha num jogo? Que vitória é essa?

Cheguei ao fim do Bloodborne; se subtrairmos a experiência e nos focarmos só na vitória, o que é que esta frase significa? “Passei horas a mexer os dedos e uma máquina analisou e aprovou essa sequência de movimentos”. Finalmente! Fui aprovado por algo que fiz na minha vida!

Apanhei as moedas todas de um jogo!

Desbloqueei 90% dos unlockables de um jogo!

Sim. E os teus filhos? Decidiste que ias dedicar este mês a um jogo; sempre que voltas do trabalho fechas-te no escritório; se não precisasses de pagar a luz, só te levantavas para comer e ir à casa de banho; hibernavas nesse cadeirão se tivesses dois baldes ao pé de ti: um KFC bucket e um balde de fezes e urina; a pele do frango tem líquidos suficientes para hidratar-te. Como é que se chamam os teus filhos, lembras-te? O teu parceiro ou parceira?

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O escapismo é uma atividade superior, para pessoas superiores; para quando o mundo não é suficiente.

O escapismo é estar a ver a RTP1 e mudar de canal. Curiosamente, estava a dar um debate sobre a greve da TAP no Canal Q; um debate equilibrado, informado, dirigido por pessoas inteligentes. Fiquei a ver.

Não é fugir. É buscar mais.

Não é “ganhar”. É crescer.

Não é “querida/querido, vou matar ogres/nazis no espaço; continuamos esta discussão amanhã, sim?”.

O avatar levanta a espada e tu imaginas-te a levantar uma espada também, no topo dessa colina. Mataste o vilão. Salvaste o mundo! És o ser humano mais poderoso do planeta!

Sabe bem, não sabe? Tentaste matar esse boss cem vezes, mas valeu a pena. Por isso é que ter uma espada com 100 de dano em vez de 99 é tão importante; com uma espada de 100 não conseguias.

O teu emprego é frustrante, estás no fundo da cadeia, ninguém te respeita, sentes-te impotente e insignificante; a tua vida amorosa não está a resultar; a tua vida social também não; a tua vida é patética e miserável. Sabe bem salvar o mundo, não sabe?

Essa espada com 100 de dano não existe; a diferença entre 100 e 99 é uma linha de código; 100 e 99 são zeros e uns numa base de dados; mas apesar disso, sabe bem. Se a tua vida era patética e miserável antes de adquirires essa espada, e se essa espada não existe, a tua vida continua a ser o quê?

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Abaixo os adultos sem filhos que compram Amiibos.

Abaixo o Doctor Who. Abaixo os brinquedos do Star Wars. Abaixo os Legos.

A série The Legend of Zelda não é impecável, nem é tão boa quanto isso. A série Half Life também não; calem-se com o Half Life 3.

Parem de idolatrar o Mario; já chega. Idolatrem antes as personagens do Bioshock, ou a Ellie e o Joe do Last of Us; idolatrem a GLaDOS.

Já imaginaram se aqueles reformados que passam os dias jogar às cartas fizessem teabagging uns aos outros?

Já passaram horas incontáveis nesse mapa multiplayer; já o conhecem de cor, cada canto, as suas variantes todas. Porque é que estão a jogá-lo? Para acabar em primeiro lugar numa tabela?

O gamer chique sabe quer ganhar e perder não são interesses para quem já não está na puberdade.

O gamer chique sabe que um jogo é uma experiência.

Chardonnay e tornedó.