Eu e tu contra o mundo
Quando me perguntam qual foi para mim o ponto de viragem dos jogos de terror, acabo por responder com a resposta mais consensual: Resident Evil. E afirmo-o por dois motivos: um relativamente fútil, já que aquela FMV (repetida até à exaustão no velhinho Templo dos Jogos) em que vemos um zombie pela primeira vez, e ele interrompe o seu lanche para olhar-nos sobre o ombro é um dos momentos mais marcantes do género. O segundo motivo é mais prático, mecânico até, e relaciona-se com a forma como tínhamos de fazer uma dura gestão dos parcos recursos à nossa disposição. Ao contrário do que alguns jogos demonstram, as balas não crescem nas árvores, e tão-pouco os kits de primeiro-socorros. Resident Evil estava longe do que ele mesmo vir-se-ia a tornar: de um jogo de terror e sobrevivência em que tínhamos de utilizar os nossos recursos de forma racionada, evitando disparar pentes de balas inteiros em um ou dois zombies, longe da política trigger-happy mais próxima de um shooter de arcadas em que a franquia da Capcom se tornou.
Não quero, com esta introdução, passar a ideia de que Solarix, o jogo bravamente concluído pelo estúdio Pulsetense Games, terá a relevância ou o lugar na história que o título da Capcom teve. Mas depois de finalizado o projecto de Kickstarter sem sucesso, e muito longe dos (reduzidos) 10000€ pedidos para o terminar, é com algum respeito que podemos ver este jogo de terror e ficção científica a ver a luz do dia. Ou a escuridão do espaço, neste caso.
Acordamos no nosso dormitório da nave, com o som da voz electrónica da IA da nave a martelar-nos na cabeça. Pouco sabemos sobre o que nos espera, mas a misteriosa voz diz-nos que um estranho vírus transformou toda a tripulação em zombies ansiosos por carne. Porque é que esta epidemia aconteceu a bordo da nave ou porque é que não fomos contagiados é algo sobre o qual não temos a menor ideia. Mas sabemos que somos apenas um engenheiro que terá de sobreviver sozinho (acompanhado da voz da IA) pelos corredores mal-iluminados da nave. Os primeiros minutos servem como tutorial: explicam-nos quais os movimentos que temos disponíveis e mostram-nos que Solarix deve ser jogado mais como Thief do que os Resident Evil actuais: a aproximação furtiva é o segredo do jogo, não só porque não somos um soldado, mas sim um “mero” engenheiro, e por outro porque as balas são muito difíceis de encontrar. Disparar rajadas de balas como um Tony Montana espacial é algo que não está, de todo, ao nosso alcance se quisermos chegar ao fim do jogo.
Solarix consegue transmitir uma boa ambiência de terror, e há muito nos seus recantos e meia-luz que me relembram o jogo Virus: It is Aware da PS1. Eu próprio estranho esta comparação mental ser tão presente quando os jogos nada têm de semelhante, mas a memória tem destas coisas e às vezes prega-nos partidas. E parece-me que Solarix tem mais de outra coisa qualquer do que de System Shock, a sua alegada inspiração como afirmado na press release.
Se há pouco dizia que munições não caiam das árvores, é seguro dizer que jogos de stealth e sci-fi na primeira pessoa também não. Até porque qualquer um dos dois são coisas para magoar se caírem em cima de alguém. Que o diga o Newton. E é neste clima de quase raridade e exclusividade que considero Solarix uma boa abordagem para quem gosta de terror e quer sentir parte do temor de estar num espaço confinado (como uma nave espacial) a tentar sobreviver. Pensaram imediatamente no Oitavo Passageiro? Eu também.
Pelo forte pendor furtivo, Solarix acaba por ser um jogo difícil. Adicionando a isso o facto de que necessitamos de dois ou três tiros na cabeça para derrotar um zombie (e muitos outros tiros se forem outras partes do corpo) mostra-nos algo: ou os developers quiseram cimentar este desnível de não sermos, de todo, um soldado, como uma certa ineficácia com armamento, ou a detecção de colisão do jogo está, digamos, mal-feita.
Solarix, lançado há uns dias pela Kiss ltd é um jogo recomendado a quem não procura apenas uns sustos “hollywoodescos”, mas que quer sentir a pressão de escapar de um ambiente futurista, hostil, sozinhos com a IA que nos acompanha na luta contra o resto do mundo. É acima de tudo uma boa viragem de regresso a outros tempos dos jogos de terror e sobrevivência, que estavam numa linha diametralmente oposta aos shooters que vivem de nos transformarem em sociopatas com um dedo no gatilho pesado. Em Solarix cada passo tem de ser estudado para nos mantermos longe do campo de visão dos nossos ex-membros de tripulação (agora tornados zombies), e cada bala a mais que gastamos é munição que não disporemos no futuro e que pode significar a linha que separa avançar no jogo ou ter de fazer load game. E um temor constante, agonizante, que nos acompanha durante todo o jogo. Será que alguns AAA poderiam reaprender algo com um género que tanto se deformou com o tempo?