“Eu sou o pão” é uma afirmação forte, quase religiosa, que evoca automaticamente a ideia do pão consagrado enquanto o corpo de Cristo. Tê-lo como título de um jogo (I am Bread no original) soa a homilia, com um tom sério, mas que não poderia estar mais distante do que trata este jogo. Os Bossa Studios já nos habituaram à loucura com o seu Surgeon Simulator 2013, que nos colocava no controlo literal do pior cirurgião à face da Terra. “Eu sou o pão” mas não sou o corpo de Cristo, mas sou uma piada transgressiva, um pedaço de loucura fatiada e uma dose de frustração das mãos do padeiro.

Já tive diversos sonhos na minha vida, e muitos deles muito estranhos. Já sonhei em estar nu em público, sonhei que voava, que me caíam os dentes, que gostava de ouvir Ana Malhoa e que Cavaco Silva era afinal um zombie sob o controlo de um Houngan emigrante na Madeira. Tudo sonhos bizarros que felizmente nunca se concretizaram, apesar do último eu achar que é quase premonitório. Mas nunca sonhei que era pão, e se o sonhasse, com o meu recente vício em Nutella (desculpa-me a traição Tuli-Creme) de certeza que o sonho ia ser erótico, comigo a barrar o meu próprio miolo com essa dádiva divina em forma de chocolate com avelãs, enquanto deslizava perto de outras fatias de pão, também elas barradas, sob o olhar atento de algumas carcaças mal-cozidas barradas com manteiga e submergidas em café com leite, ao bom estilo “lar de terceira idade”.

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I am Bread é o sonho estranho que nunca tive materializado em jogo, e que conjuga a frustração massificada iniciada com QWOP de 2008 (o pequeno infame/genial jogo em que controlávamos as pernas de um maratonista na senda de o conseguir fazer percorrer os 100 metros da pista, e Surgeon Simulator 2013, que mesclava estas mecânicas num ambiente próximo do surreal, quasi-sketch monthpytonesco da sala de hospital ao qual só falta a máquina que faz beep.

Neste frustrante jogo vivemos o papel de uma fatia de pão consciente cujo objectivo de vida é encontrar o calor de uma torradeira e evoluir para o próximo passo, o da torrada, numa manobra kafkiana inédita nos produtos de padaria. Para isso temos de controlar cada um dos cantos da fatia, agarrar objectos, escalar, atravessar divisões, sempre com um pensamento na nossa cabeça côdea: atingir o nirvana no calor de uma torradeira. Porém, este trajecto é frustrante, muito difícil de controlar e dominar os comandos, o que nos levará invariavelmente a ver o ecrã de falhanço. Isto porque a nossa peregrinação panificadora tem de ser relativamente impoluta: temos de evitar diminuir a nossa comestibilidade ao tocar no chão ou noutras superfícies/objectos que possam “conspurcar” a nossa integridade. É que aqui a regras dos 5 segundos não é aplicável.

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Curiosamente, apesar de toda a loucura, dificuldade e surrealismo e dos diversos modos diferentes de jogo que I am Bread apresenta, é no modo de história que temos uma surpresa: este jogo da Bossa Studios tem uma narrativa subjacente. É que enquanto atravessamos nível para nível para mergulhar na torradeira, existe uma linha de enredo sobre o proprietário da casa, Mr. Murton, que vai sendo desenvolvido. Durante a história vamos percebendo que o idoso, para além de extremamente desarrumado e irascível para com o seu Município, está em terapia porque ninguém acredita nele quando afirma que parte do caos em que a sua casa se tornou se deve à acção de uma fatia de pão consciente.

E com a linha de história sobre Mr. Murton chegou o dia que todos esperávamos no mercado dos videojogos: um jogo sobre uma fatia de pão antropomórfica tem mais substância e complexidade narrativa do que um Call of Duty.