Nota prévia: é curioso chegarmos àquela altura em que um artigo de opinião necessita de um aviso a precedê-lo, mas os fanboys são uma turba assustadora, e como pouco me interessa ter uma série de gente enraivecida sem razão à minha porta, com picaretas, ancinhos e archotes, ou pior, visto eu pertencer ao género galináceo que apresentem a vontade de me inserir um espeto por um dos orifícios disponíveis no meu corpo e por-me alegremente a rodar sobre carvão em brasa. Antes de explicar o porquê de eu ter ficado ofendido com um simples gesto da Sony, há-que deixar em letras capitulares, de forma gritada e que apenas não tem um letreiro de néon a adorná-lo porque não só acho isso uns níveis de kitsch acima do que tolero quanto me é difícil de fazê-lo em HTML.

EU FIQUEI EXTASIADO COM O ANÚNCIO DE SHENMUE 3.

Finalmente ver uma das séries cujas sequelas eu mais esperava, para cujo “fanatismo” fui endoutrinado pelo Leonel há alguns anos. Nada do que se seguirá se reflecte no carinho que tenho pela série, pelo seu criador Yu Suzuki ou para com o estúdio ys Net. Este texto é apenas um gigantesco “puxão de orelhas” à Sony. Estamos prontos? Então vamos lá.

shenmue-3-02

“Eu hoje venho aqui falar duma coisa que me anda a atormentar (…)” já dizia o Sérgio Godinho e eu cito-o com todo o prazer.

Há algumas notícias que nos deixam radiantes quando apresentadas: coisas que desejamos profundamente e que agradecemos às companhias envolvidas por atenderem aos nossos pedidos (silenciosos ou não). Foi o caso da retro-compatibilidade da Microsoft, vermos que The Last Guardian poderá mesmo vir a ser lançado, o anúncio (finalmente) do remake de FF VII, e é claro, Shemue 3. O pior é mesmo quando deixamos a euforia passar, e vemos a grande imagem em torno de algumas destas apresentações que abraçaram sem mais largar a opinião-pública do mercado dos videojogos durante esta semana de E3 2015.

A dúvida que me tem atormentado é simples: depois de acalmar a grande besta sedenta criada pelo Leonel Ferreira que ansiava Shenmue 3, parei, e a seguinte questão chegou à minha mente: “é legítimo a Sony incluir um Kickstarter na sua conferência da E3?”. E após algum tempo de reflexão cheguei à simples resposta “Não!”. Tenho até de contrariar o meu companheiro de Capoeira (no artigo hiper-ligado acima) quando refere “(…)Para se dizer a verdade, não quero saber se isto é feito através de crowdfunding ou não. (…)”. E não o aceito porque sinto que a Sony (com ou sem a conivência de Suzuki) instrumentalizou uma boa revelação noutra coisa qualquer, mas que desvirtua simultaneamente o fundamento do próprio Kickstarter, assim como a participação quase inócua (se é que alguém pode chamar “inócuo” a três milhões de dólares) dos fãs na sua realização. E para explanar melhor a minha indignação, peço-vos que me acompanhem nesta viagem meio ficcional, meio baseada em factos reais. Seguem-se uma série de perguntas que coloquei a mim próprio e as respostas a que cheguei.

plant_growing_from_coins-d6504b2732c41e4eb44efb08dc898bc9

Então mas o Kickstarter e o crowdfunding são exclusivos de projectos pequenos?

É claro que não. O crowdfunding é uma forma de financiamento como outra qualquer, mas que dá uma sensação de envolvimento aos consumidores (que são também investidores ). Se vemos muitos projectos de concepção de videojogos que não ultrapassam os 10.000$, temos também muitos outros que ascenderam alguns milhões. Occulus Rift, Star Citizen, Double Fine Adventure, (assim denominado à época), Bloostained e a Ouya são exemplos de projectos que ultrapassaram o milhão de dólares de retorno, alguns até o ultrapassaram de longe. Mas apesar de o Kickstarter já ter dado alguns problemas (e lembro-me do caso caricato do Towns), infelizmente o crowdfunding é mesmo a única forma de equipas muito pequenas conseguirem produzir os seus videojogos. E infelizmente, graças a alguns projectos (novamente, como o Towns) que são puras manobras de vigarismo, diariamente há muitos projectos viáveis que não terão financiamento porque grande parte do público prefere apostar em projectos “seguros” do que em pequenos estúdios desconhecidos. E têm toda a legitimidade para tal.

O crowdfunding começa a assemelhar-se à única possibilidade de séries que são favoritas dos fãs de regressarem. Isto é verdade?

Os últimos anos têm-nos provado exactamente isto e Suzuki foi apenas o último destes casos. Mas anteriormente tivemos os históricos Charles Cecil, Jane Jensen, Tim Schafer e Keiji Inafune a conseguirem regressar a séries que nenhuma editora quis dar continuidade, ou a alguns projectos novos que os fãs reconheceram de imediato com outras produções da sua história. Se não fosse o crowdfunding muitos destes históricos game developers estariam fadados ao esquecimento ou a serem para sempre reféns das companhias a que estavam vinculados. O Kickstarter permitiu-lhes, acima de tudo, a liberdade para criarem e cumprirem as suas ideias, provando ao mercado que alguns géneros não estão de todo mortos. A participação financeira fala por si.

Mas qual o problema do Kickstarter de Shenmue III? É o facto de ser oficial a participação financeira da Sony?

Shenmue III não é o primeiro projecto a ser apenas parcialmente financiado por crowdfunding. E como é óbvio, o co-financiamento não é de todo o ónus do meu problema com o Kickstarter em si. Todos percebemos que os 2M$ do Kickstarter eram largamente insuficientes para criar o jogo, e era mais do que óbvio que havia uma quase totalidade de investimento a provir de outros bolsos, no caso, a Sony, como os seus dirigentes acabaram por comprovar. É mais do que positivo que a viabilidade de execução não dependa nem fique refém do crowdfunding. Shemue III iria ser uma realidade, e os recordes de patamares atingidos no Kickstarter ditaram isso mesmo.

Article Lead - wide6438416512c1neimage.related.articleLeadwide.729x410.12bz51.png1419650326113.jpg-620x349

Então se o problema não é com Yu Suzuki, então o problema é com a Sony?

Sim, o problema é mesmo com a Sony e por diversos factores. Como disse antes, cada vez mais o crowdfunding existe com desconfiança dos investidores (ou seja, todos nós) e tendemos cada vez mais a olhar os projectos de nomes conhecidos. É uma avaliação de risco que todos fazemos com o nosso dinheiro, e que é de todo legítima. Mas o que sentimos da campanha lançada “através” da Sony é que há uma notória instrumentalização por parte da empresa. Instrumentalização do conceito de crowdfunding como “medidor de mercado”, que não deveria ser o fundamento base da existência do Kickstarter. É mais do que óbvio que não seriam aqueles 2M$ que fariam diferença à Sony, se avaliarmos por exemplo o custo expectável da conferência. A Sony quis apostar no seguro e auscultar os consumidores, e utilizou o Kickstarter para tal. Poderão afirmar que é legítimo a companhia perceber se o seu investimento é justitficável, mas também me é legítimo lembrar que os negócios são mesmo assim. Às vezes acerta-se, e muitas outras vezes erra-se.

A Sony instrumentalizou também a nossa paixão e ânsia colectiva por Shenmue III para ocupar espaço numa conferência que não tendo sido inócua, demonstrou que havia muito pouco a ser produzido “em casa” e que fosse relevante.

A Sony promover uma campanha de Kickstarter (ainda que não seja sua) pode abrir portas a crowdfunding de companhias ditas “grandes”?

É claro que sim. A grande instrumentalização foi mesmo feita a nós mesmos, enquanto espectadores e consumidores de videojogos. Após a conferência da Sony posso dizer que já vi de tudo a decorrer na E3, mas das que mais me chocou foi a utilização de minutos preciosos de conferência (cujo valor minuto/dólar é extremamente elevado) a ser ocupado por uma campanha de crowdfunding. É estranho, algo abjecto e abre um precedente perigoso. Não houve muita gente a ficar chocado (o que é surpreendente) mas acredito que esta instrumentalização servisse também de “medidor de sensibilidades”, e notoriamente, passou com distinção. Já não nos podemos surpreender se a EA e a Ubisoft perceberem que podem usar este modelo duplamente: por um lado como uma espécie de modelo de pré-reserva encapotado e por outro como modelo de co-financiamento que secará por completo o mar do Kickstarter para projectos cujo modelo é o único viável para a sua execução.

Podem dizer que é legítimo as grandes companhias lançarem campanhas de crowdfunding, porque é um modelo que não é exclusivo para projectos independente, e eu aceito isso. Mas a ética (ri um pouco a ligar ética e gigantes empresariais) de ter um tubarão que consegue disseminar de forma extensa as suas campanhas choca com a ironia da própria ideia de crowdfunding, onde se gastará a quase equivalência do financiamento em marketing da própria campanha. E poderão também dizer que os consumidores serão os juízes desse tipo de movimentos se (ou quando) acontecer. Mas se confiarmos no bom-gosto e julgamento da maralha estamos bem tramados: em geral, como colectivo, somos muito maus a escolher. E esse cenário de quase igualidade de oportunidades que o Kickstarter no fundo promove verá o prato da balança desequilibrar-se-á por completo para os gigantes.