Estou de luto. É interessante que o último jogo da Tale of Tales seja comparado a Gone Home por muita gente; não me surpreende, mas é estranho para mim visto que sem a Tale of Tales, Gone Home provavelmente não existiria. Um dos estúdios de videojogos mais importantes da nossa geração, cujo trabalho será bastante discutido nas próximas décadas, acredito, fechou portas.

A partir de hoje, a minha voz é a negrito. Não sei até quando, nem me interessa.

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Análise a Sunset.

Tale of Tales, o estúdio do casal belga Auriea Harvey e Michaël Samyn, é conhecido por jogos fundamentados em grandes conceitos mas que pecam na execução. Aquilo que os jogos deles tentam ser compensa aquilo que na verdade são, no entanto; recomendaria a compra da ludografia deles (exceto Bientôt l’été) a qualquer pessoa realmente interessada em videojogos enquanto medium artístico. Sunset não é exceção; também peca na execução, também se baseia em grandes conceitos, também é uma experiência singular. Digo com toda a certeza que este é o melhor jogo do estúdio até hoje.

Comecemos pelo mal. A performance é péssima. O texto tem erros ortográficos. Há problemas narrativos; no meu primeiro e por enquanto único playthrough, não percebi se o irmão da protagonista morreu ou não; o jogo indicou-me que sim, e depois que não. Não percebi se a protagonista e o personagem principal (neste jogo são pessoas diferentes) estavam ou não romanticamente envolvidos; após ter visto a roupa dela na cama dele, e a avaliar pelos bilhetes que trocavam um com o outro, julgava que sim, mas afinal nunca se tinham visto. O enredo tem problemas de pacing, e o jogo é demasiado longo, faz lembrar um filme mal editado; há conteúdo que quase que pede para ser cortado, ou condensado em menos níveis. Digo que é demasiado longo, mas na verdade conheço poucos jogos cujos tempos de playthrough possam variar tanto como em Sunset; como não considero isso algo mau, voltarei a este tópico mais abaixo.

Ainda não sei também se gostei do final; dicotomizando o jogo, e comparando o final com o resto, sinto que é medíocre e anti-climático, mas uma parte de mim não tem a certeza; não sei se não estarei a observá-lo por uma lente menos correta; visto que nem certezas subjetivas tenho, estou longe de poder tentar fazer uma avaliação objetiva. Talvez daqui a mais tempo.

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Falámos do mal; agora passemos ao resto. Não vou mentir, compreendo as comparações a Gone Home, um jogo também me evoca o outro, mas não só acho que a comparação é injusta, que desvaloriza os dois, como a acho incorreta, visto que as semelhanças entre os dois jogos são superficiais. Seria como comparar A Game Of Thrones com Memorial do Convento; são duas obras alegóricas e ambas estão carregadas de metáforas relevantes e incisivas sobre a vida contemporânea; ambas têm elementos de fantasia e ocultismo; ambas decorrem num setting que não é medieval, mas parece; uma é mais fácil de ler e mais estimulante que a outra; uma é aventura e escapismo, a outra não; ambas foram escritas por artistas. Não acho que uma tenha mais valor que a outra, ou que Saramago tenha mais mérito que Martin; são só duas obras completamente diferentes em quase tudo.

Para mim, Sunset evoca primeiro The Novelist que Gone Home. Para quem não conhece, The Novelist não se centra num só momento, mas em vários episódios do dia-a-dia e no que há de comum e incomum entre estes: na evolução dos personagens, nas suas relações, entre eles e consigo próprios, nos seus pensamentos, nas suas dúvidas, nas maquinações conceptuais à volta deles, que os enfraquecem, que lhes dão força, esperança e angústia. Acima de tudo, são dois jogos que falam da importância da Arte e da família, e de um confilito entre esses dois valores.

Sunset é uma obra artística que fala de arte. Há quem dirá que é um jogo sobre guerra, sobre regimes fascistas, sobre política; também é, mas no fundo não. Outros dirão que o país fictício onde o jogo decorre é um espelho para o resto do mundo, que na verdade está a comentar os Estados Unidos, por exemplo. Quem estará mais atento talvez sentirá mais na pele os temas de anti-sexismo e anti-racismo (a protagonista é uma mulher afro-americana); na verdade, o jogo também não é sobre isso. É sobre arte. O que há em comum nisto tudo, e o que está sempre presente no jogo, de uma maneira ou de outra, é a Arte.

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O jogo decorre todo no mesmo espaço. Escondido por detrás de um painel numa divisão chamada “a área dos jogos”, onde há um tabuleiro de xadrez, encontram-se cameras de filmar, ecrãs, e emissores e recetores de rádio; um terminal de comunicação com o mundo exterior; nesse terminal também podemos desbloquear portas que estão eletricamente trancadas; podemos também ligar um gira-discos, onde se pode ouvir desde música clássica a jazz americano. Não é a única fonte de música, no entanto; as músicas e os livros favoritos dos autores andam dispersos pelo o espaço do jogo como povoam a mente deles; se os jogadores premirem a barra de espaços, podem fazer zoom-in; não há outro uso para essa ferramenta senão para ler os títulos dos livros espalhados pela casa de Gabriel Ortega; cada título de livro que os jogadores lêem desbloqueia um achievement.

Gabriel Ortega é o patrão da protagonista, o dono da casa que ela limpa, e o personagem principal; a protagonista é a sua empregada doméstica. O apartamento de Ortega está cheio de obras de arte; a cada dia que passa, ela encontra mais obras de arte na casa dele, e os jogadores também. Chega-se a um ponto no jogo em que as obras formam uma espécie de labirinto, e é quase impossível deslocar-se pela casa.

Sunset e The Novelist são dois jogos imperfeitos e problemáticos a nível de game design. Encarnar uma mulher-a-dias e fazer tarefas domésticas não é estimulante; é quase tão aborrecido como encarnar um fantasma em The Novelist, que observa passivamente a rotina de uma família. Em Sunset também há um fantasma, mas num sentido figurativo; a forma como Sunset caracteriza Ortega não tem paralelo no mundo dos videojogos (e por sua vez em qualquer outro medium); é, de facto, como um espectro que assombra o seu próprio apartamento; Ortega nunca está em casa quando estamos; os jogadores acabarão por formar uma imagem mental muito definida do personagem, sem nunca o encontrarem fisicamente, sem nunca verem o seu modelo, a sua cara, ou ouvirem a sua voz.

Mas o centro de Sunset não é nenhuma das suas personagens, dizia mais acima, é a Arte; o jogo coloca a Arte no centro de um confilito, e não só questiona o seu papel, como pede aos jogadores para fazerem o mesmo, e tentarem arranjar uma resposta. Os jogadores não são obrigados a acenderem a luz, ou a ligarem os gira-discos; não são obrigados a fazerem nada, na verdade; dizia também acima que o tempo de playthrough de Sunset pode variar imenso: tanto pode demorar mais de seis horas como quinze minutos, ou nem isso. Os jogadores podem terminar um nível assim que chegam ao mesmo, se assim decidirem. Ninguém os impede. Eventualmente Gabriel Ortega foge do país e a protagonista, que se chama Angela, fica com o seu apartamento só para si. Que mudanças fará neste?

Angela está dividida entre Gabriel e David, dois nomes contrastantes que não foram escolhidos ao acaso, que pertencem a duas metades contrastantes das escrituras sagradas judaico-cristãs, e que retratam duas personalidades e posturas também contrastantes; Gabriel Ortega e David, o irmão de Angela, opõem-se de formas opostas ao novo regime que subiu ao poder pela força. O novo governo tomou conta dos media e da cultura do país; transformou a cidade em que as três personagens vivem num estado policial; os museus e casas de opera em quartéis para soldados. Sem cultura, não há povo, qualquer regime fascista o sabe, e o primeiro alvo a abater é a Arte.

Enquanto que David combate a ditadura com balas, fogo e explosões, Gabriel tenta preservar o legado do seu país. Enquanto que David não se importa de pegar fogo a quartéis-museu, Gabriel rouba caixas e caixas de obras artísticas e guarda-las em sua casa. O que é mais importante? Resistência passiva, submissão, ou liberdade a todo o custo, belicismo?  Antes da casa de Ortega se encher de corredores labirínticos de caixas, se o jogador observar a figura esculpida de um minotauro, Angela pergunta a si mesma: “is the minotaur not supposed to hide in a labyrinth?”; o minotauro está na varanda situado entre Angela e a cidade; “why is he standing here, so defiantly?”.

Ao descobrir códigos para desencriptar documentos do Estado no escritório de Gabriel: será que Angela os tenta ler e partilha a informação como seu irmão, que lidera a revolução?

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Em cada nível, Angela pode sentar-se numa cadeira que vai mudando de lugar consoante os dias, e escrever no seu diário. Pode; os jogadores não têm que o fazer; mas se fizerem, por exemplo, ficam a saber de um episódio em que o regime contra-ataca revolução escondendo soldados em camiões que dizem “Arte Y Cultura”. Nada indica aos jogadores que Angela escreverá no seu diário nessa cadeira; só o podem descobrir experimentando; se não experimentarem, arriscam-se a perder escrita de alta qualidade (apesar de um ou dois erros de ortografia), estudada mas natural; reflexões pertinentes e mais profundas do que aparentam, sobre todo o tipo de temas.

Apesar da frustração inicial causada pelo hand-holding não-existente, o efeito a longo prazo é no mínimo interessante: o jogo dirá, por exemplo, aos jogadores para lavarem a loiça sem nunca terem ido à cozinha; uma vez encontrado o lava-loiça, saberão exatamente para onde ir quando o jogo lhes mandar preparar uma refeição, noutro dia. Não é só Gabriel Ortega que se materializa na nossa mente, mas a casa também; dei por mim a dirigir-me de forma instintiva numa determinada direção quando o jogo me pediu pela primeira vez para pôr a mesa; fiquei espantado, porque havia pelo menos três outras mesas que podiam servir para essa propósito; acertei na mesa certa; a partir de um certo ponto, acerta-se em tudo; não é só a arquitectura que aprendemos, mas a lógica interna da casa.

A partir de um ponto, a casa é mais nossa que de Ortega; vai mudando consoante as nossas escolhas.

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Já que comecei por falar de comparações com Gone Home, aproveito para fechar essa linha de pensamento com uma recomendação: não sei descrever o público-alvo de Sunset em poucas palavras, nem fazer um bottom-line; no entanto uma coisa é certa, mesmo os gamers que se consideram amantes do experimental e progressistas poderão ter alguma dificuldade em apreciar este jogo. Dizer que este jogo “é para gamers”, como o casal afirmou publicamente, é uma hipocrisia de artista ferido. Mesmo quem gostou de Gone Home pode ter dificuldade em apreciar isto, e quem tentou Gone Home mas não percebeu o seu apelo é melhor que se mantenha afastado de Sunset, que sentirá que desperdiçou dinheiro. Trata-se de um jogo que só fará sentido daqui a umas décadas, ou que talvez nunca fará.

Os temas não são tão simples nem apresentados de forma tão simplista como em Gone Home. Não há intriga, a premissa não sugere urgência. /* nota para editor sobre a frase seguinte: estou a ir muito longe? */ Por exemplo, não há uma mensagem pro-LGBT em forma de plot-twist final, numa postura semi-infantil (que surpresa!) semi-cobarde, de quem não quer afastar um público homófobo e sexista (como a maioria dos gamers vocais o é de forma assumida), enganando-o para aumentar vendas. Não há senhas escritas em papéis para abrir cofres. Não há passagens secretas à Scooby-Doo.

Gone Home é um jogo para um público mais adulto, mas está mais longe do que Sunset de ser um jogo para adultos. Alguns dirão que nem é um jogo, e eu, que costumo contra-argumentar essa visão limitada do que é e não é um jogo, nem negarei, por cansaço. Digo apenas que seja o que Sunset for, não o considero só produto de artistas, mas como uma obra artística, e talvez como uma obra de arte; se for uma obra de arte, existe uma entre poucas no Steam; digo-o sem pretensão, sem fazer juízos de valor, e ciente dos pros e contras que isso representa.

Não é para toda a gente. Não é melhor nem pior por ser o que é, é só o que é; é o que os seus criadores queriam que fosse, não tentaram disfarçá-lo de outra coisa, não comprometeram a sua visão, e se isso não for algo bom é pelo menos louvável.