Sabes Casimiro, o Sérgio Godinho tem razão naquilo que diz. É um dos problemas dele, uma doença diria até, e que já o afecta há largas décadas. Quando ele te escreveu esta carta-cantada, os tempos eram outros, a Primavera marcelista já lá ia e o PREC também, e quase todos os partidos, da esquerda à direita eram na prática, todos putativamente de esquerda. O CDS era mais à esquerda, o PPD era mais à esquerda, não eram bem esquerda, eram direita, mas imitavam bem.
As décadas passaram, e tu amadureceste Casimiro, mas precisas de ter cuidado com as imitações. Há mais de vinte anos atrás, quando eu dava os primeiros passos na Banda-Desenhada e na Ilustração li uma frase do Todd Mcfarlane que me marcou até hoje. “Para evoluir imita muito, mas imita os melhores”. Eu compreendi perfeitamente o que o Todd dizia. Se queremos crescer dentro de qualquer arte temos de observar quem nos precede e analisar as razões que lhes conferem o reconhecimento que têm. Dissecá-los, escrutiná-los, aprender com o seu trabalho. Antes de ganhármos a nossa própria independência criativa, parte do crescimento enquanto autores passa por absorver o máximo de influências possíveis. Foi o que fiz na ilustração, na BD, no design e na escrita, pelo meu processo formativo autoral até à Licenciatura em Belas-Artes e após a graduação. É o que continuo a fazer enquanto profissional, observando o que está à minha volta, percebendo as suas origens, os seus tiques. É o que repito ano após ano aos meus alunos de Ilustração. A imitação, tal como o Mcfarlane o indicava, já ficou para trás, nos meus anos idos da adolescência, e muito do que eu sou enquanto autor é a súmula de dezenas ou centenas de figuras que são e serão infinitamente mais importantes do que eu.
Acredito, Casimiro, que existe uma altura em que a independência autoral tem de ser evocada, e essa imitação deixa de fazer sentido, tanto pelos grilhões criados pelo próprio acto de imitar, como pelas constrições internas que nos colocamos. Mas também sei Casimiro, tal como o Sérgio apregoava há quase quarenta anos e que é tão actual quanto à época, é que este término de relação com a imitação é só para alguns. Para quem quer crescer, para quem se orgulha da sua individualidade, para quem quer tentar (de forma inglória) destacar-se no meio da multidão. E depois há os outros. Ai Casimiro, os outros. Aqueles que imitam descaradamente e sem qualquer vergonha. Fazem-no pela falta de coragem de ganhar a sua independência intelectual. Mas acredito, que o fazem essencialmente por não conseguirem chegar mais longe do que isso. A criatividade, a cultura, a intelectualidade e acima de tudo o talento são coisas que podem ser cultivados mas que não podem ser criadas do zero ou comprados. Quem imita depois de uma fase de formação, de introspecção, de produção privada para si mesmo fá-lo por falta de alcance, por pequenês cultural e por diminuto ou inexistente talento.
Há também o caso Casimiro, e tu sabe-lo bem, quando esta pequenês intelectual é gritante no próprio acto de imitar. Porque se almeja ser algo que sabemos não ter talento/capacidade para atingir, então colocamo-nos em bicos-de-pés, esticamo-nos, observamos aquele objectivo inalcançável em qualidade mas de fácil tentativa de imitação. E aí caímos no ridículo de tantas formas. Porque a imitação é notória, identificável, tão exposta que é entoada pelo silêncio de quem observa. E porque essa imitação não é mais do que uma cópia reles de terceira ou quarta categoria do original. Próxima na forma, mas tão qualitativamente distante do conteúdo. Ser original e inventivo é difícil, extremamente difícil até. Ser um mero imitador é fácil, confortável e motivo de regozijo. Para os fracos é claro. E tu bem sabes como e quem eles são Casimiro.
O mercado dos videojogos é adolescente, e por isso a imitação que existe é ainda muito pueril. Seja no game development, nos media ou crítica da área, a imitação vai dando uns pequenos passos, ainda de criança, atrás de um meio que ainda nem chegou à idade adulta. Há tantos casos conhecidos que são tão notoriamente identificáveis que atingem o patamar do risível. Lembro-me por exemplo do Great Gianna Sisters, para o Commodore 64, muitos anos antes da série ser reinventada no mercado indie. Great Gianna Sisters é uma cópia tão descarada de Super Mario Bros. que só nos dá vontade de rir. E para quem jogou ambos a percepção é simples: o original está a anos-luz da imitação. Como quase sempre acontece. Um pouco como o Under Pressure composto por duas supernovas da criatividade musical – Queen e David Bowie – e a sua pobre imitação pelo Vanilla Ice. O tempo demonstrou facilmente que o original e talentoso subsiste, enquanto que a mera cópia de 300$ é erodida pelo tempo. É sempre assim Casimiro, sempre.
Ainda recentemente desabafei a minha tristeza com Raven’s Cry, aquela cópia “dos chineses” do Assassin’s Creed: Black Flag. Havia uma esperança da minha parte que o jogo não fosse uma mera imitação, mas uma homenagem ou uma influência. É que isto são posturas diferentes Casemiro, como ainda esta semana o disse sobre Oceanhorn. Mas não, Raven’s Cry não é uma homenagem, nem uma leve inspiração em Black Flag, mas sim um produto mal-feito, mal-copiado, mal-terminado e um desperdício de 49,99€. O original, com todos os problemas que possa ter, continua a valer mais a pena. Muito mais.
Por isso Casimiro, cuidado com as imitações. O tempo, como sabes, é o melhor juiz da qualidade versus imitação. Porque há gente pequena, desprovida de talento, que facilmente confunde influência com imitação, apenas como forma abjecta de justificar o seu fraco conteúdo. Muita gente diz que pouco é inventado, e que tudo é imitação de algo, mas eu acho essa visão extremista. Tudo é influência do que lhe preceder porque nenhum autor, ao contrário do que John Locke dizia, é uma tabula rasa. As nossas influências serem perceptíveis no que se cria é algo perfeitamente natural e lógico. Mas isto é diferente de encontrarmos um objectivo e o copiarmos sem qualquer contenção. Com tantos jogos a surgirem que são facilmente apelidados de “este é mesmo parecido com o jogo x” e a ter sucesso com isso, é caso para repensarmos a forma como aceitamos de bom-grado a imitação. Pensemos nos autores, originais e criativos, que vêem as suas obras a serem meras matrizes de Xerox para a vanglória de gente pouco talentosa, mas não menos bem-sucedida.
A vida não é justa Casimiro, mas acho que temos de nos esforçar colectivamente para valorizar o novo, o criativo, o original, o diferente, o que tenta destacar-se pelo talento e pelo trabalho. É uma tarefa difícil, eu sei, mas não impossível. Mas temos mesmo é de ter cuidado, muito cuidado com as imitações. Separar o trigo do joio, a substância da cópia sem conteúdo nem cérebro. É difícil, eu sei, mas necessário. Sob pena dos videojogos e da crítica sobre eles, assim como toda a Arte em geral ficar desprovida de novos avanços, se copiar for tão rentável e proveitoso como é agora. Porque basta uma pequena pressão para o reles imitador se cingir à sua pequenês. Só precisa de um dedo apontado.
Mas até existir essa força, tem cuidado com as imitações Casimiro. Discerne o original da cópia. Às vezes é tão óbvio que é difícil de distinguir. Acredita.