Há inúmeras formas de definir psicologia. Uma forma mais ou menos racional e cientifica será dizer que psicologia é a ciência que estuda os problemas da mente, visíveis através de distúrbios de comportamento considerados como desvios perante a capacidade de cada ser humano se adaptar ao que é um funcionamento em sociedade (seja ela qual for). Se quisermos definir de forma menos convencional, e pegando na origem etimológica da palavra, que é de origem grega (pois claro): psyché=alma + logos= conhecimento, chegamos à romântica conclusão que Psicologia pode ser vista como: a ciência da alma.

Provavelmente já vos aborreci de morte com esta introdução e a probabilidade de continuarem a ler este artigo é agora pouca ou nenhuma. Uma vez disseram-me para nunca falar das coisas sem contexto (coisa que faço com muita frequência) e é por isso que comecei este artigo desta forma – mesmo correndo o risco de vos entorpecer.

Gosto de me ver como uma mistura das duas definições: sou Psicóloga – uma investigadora que procura estudar, de forma racional, o que nos vai na “Alma”, essa palavra que uso para definir o que se encontra armazenado algures numa das salas escondidas na máquina perfeita a que chamamos Cérebro – essa máquina que tanto me confunde quanto me fascina.

Como qualquer investigadora que procura ajudar o objecto da sua investigação, neste caso os Outros e Eu, tenho como principal objectivo encontrar o “erro” não mecânico dessa máquina perfeita. Por erro digo aquilo que não está bem – que nos impede de funcionar no melhor das nossas capacidades; aquele “botão” que nos custa tanto a encontrar e que liga e desliga tanta coisa da nossa vida, sem qualquer explicação física ou neurológica. De forma muito simplificada e pouco aceite entre os meus colegas de profissão, chamo a esses “erros” da máquina-psique, os nossos Demónios. Parece muito religioso não é? Até pode ser…afinal não posso negar que cresci, como a grande maioria dos transmontanos, numa cultura mais ou menos povoada por dogmas e palavras religiosas.

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Escolhi Psicologia como vida profissional numa altura em que me decidi a ajudar os outros a combater os seus “Demónios” – aqueles traumas, complexos, ideias, noções que temos de nós próprios, que muitas vezes não sabemos quando e porquê começaram, e que simplesmente nos matam silenciosamente. Matar parece uma palavra forte? Para mim, tudo o que nos impede de viver e desfrutar do que somos e temos – está a matar-nos.

De certeza que sabem do que estou a falar. Já todos vós conheceram e muitas vezes foram dominados pelos vossos Demónios. É aquela voz que vos sussurra quando estão distraídos: “Nunca vais ser Bom o suficiente”, “Nunca vais ser Bonito(a) o suficiente”, “Nunca ninguém vai gostar de ti pelo que és”, “és uma farsa, um fraco(a), um cobarde, uma marioneta”, “ conforma-te”, “sê igual aos outros”, “não és inteligente”, “és gordo(a)”…e a lista de mentiras que nos é “sussurrada” em forma de verdades continua perpetuamente…..

Não é surpresa nenhuma, nem sequer confidência, se vos disser que fui muito “atacada” por esses demónios. Sendo mulher, as palavras que os demónios nos sussurram têm um peso adicional – o peso do reflexo do espelho quando acordamos todos os dias. Eu sei o que provavelmente estão a pensar: “Isso é sexismo – nos homens esse peso também existe”. Têm razão – mas os estimulos socio-culturais (filmes, moda, etc), são mais padronizados, rigidos e intransigentes para o feminino. Sendo eu uma mulher que nunca foi muito convencional em nada, desde o físico ao intelecto, era um alvo especialmente apetecível para toda a espécie de demónios que poderiam existir. Sorrio agora ao lembrar-me das vezes em que tentei, em vão, argumentar racionalmente com eles, pedir-lhes que parassem, que se fossem embora e me deixassem sozinha…. isso nunca aconteceu.

Numa altura particularmente difícil da minha vida, acabada de entrar para a faculdade onde buscava conhecimento técnico para, qual soldado pronto a entrar em batalha, poder finalmente lutar de igual para igual (numa luta mais justa), com esses seres que habitavam a minha mente, a batalha estava quase perdida para mim. Estava cansada. Estava a sentir-me derrotada. Frustrada. Prestes a mandar a toalha ao chão e a dizer-lhes: “Ganharam – sou tudo aquilo que vocês dizem…não sou nada do que quero! Deixem-me ficar só e enlouquecer em paz.”, deu-se o “milagre”, aquele momento em que tudo muda.

Descobri os videojogos. Melhor – Descobri como os Videojogos fazem parte de mim. E mais importante ainda – descobri a violência nos Videojogos. Poder ir para um lugar onde poderia combater, de forma activa, forças do mal, foi absolutamente mágico para mim. Poder desligar-me da realidade que teimava em atacar-me e viajar para um mundo alternativo onde eu era a soberana do meu caminho, abriu as portas das salas da minha sanidade.

Numa altura em que a revolta, a frustração, o ódio alimentado pelos meus demónios oscilava entre o momento em que explodisse – atingindo inevitavelmente outros, ou implodisse – atingindo unicamente a mim, de forma brusca e até letal, descobri um mundo onde toda a agressão poderia escapar – não atingindo ninguém.

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Lembro-me de um momento particularmente marcante para mim. No limite das minhas forças de luta psíquica, numa altura em que tudo à nossa volta descamba e perdemos a confiança no que é mais basilar em nós e nos outros, comprei Manhunt. 2003 – esse ano em que tudo se transformou. Comprei Manhunt porque li tudo o que foi escrito acerca desse jogo e procurava algo extremo.

Pus Manhunt na consola numa 6ª Feira à noite…bem noite…quando os demónios que habitavam o cérebro da Alexa se preparavam para acordar. Senti um alívio imediato. Como se alguém me tivesse dado um analgésico para uma dor que me consumia há muito. Ali, no ecrã, estava James Earl Cash – um homem posto numa situação contra a sua vontade, onde todos o querem matar e onde alguém (The Director) grita constantemente ao seu ouvido: “go on…..you cant do it….. you are a coward…. are you crying, you little bitch?…. you are a waste….you are garbage.”…. Desde a primeira morte no ecrã, em que James Earl Cash empunha um saco plástico e sufoca o seu inimigo, senti que matava algo em mim e salvava algo muito mais importante. Cada morte era um sopro de vida que me trazia de volta. Quanto mais violenta fosse a forma, mais eu acordava. Com o passar das horas reparei que os demónios sussuravam cada vez mais baixo. Agora eram um mero murmúrio…. pouco a pouco, conseguia tirá-los da minha cabeça e pô-los no ecrã. Punha cada dor em cada personagem que magoava James Earl Cash. Punha cada traição que me fora feita, em cada acto de revolta de Cash. Cada palavra que foi dita para me destruir, em cada arma empunhada por James. Cada agressão sofrida transformada em agressão desferida naqueles seres virtuais que procuravam a morte de Cash. Devagar, a sanidade e a certeza de quem a Alexa nasceu para ser, vinha ao de cima.

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A psicóloga ganhava novas armas. A luta contra os demónios era combatida na minha mente, mas agora tinha um lugar onde se tornava mais justa.

Sim – estão a ler bem. Uma psicóloga está a defender a violência nos videojogos como uma forma de canalizar a nossa própria violência – seja ela contra nós mesmos ou contra os outros. Uma forma absolutamente segura, já que num videojogo não magoamos rigorosamente ninguém. Poder projectar no ecrã tudo o que nos consome, é revigorante. Saudável. Estamos num ambiente seguro, onde tudo o que temos é o nosso mundo e o que vamos combater. Sem nunca perdermos a noção de Nós mesmos e da Realidade, podemos entrar num mundo e voltar dele quando quisermos. Esse mundo pode equilibrar o que muitas vezes a realidade desiquilibra. Lutar desta maneira requer maturidade e capacidade de pensar sobre nós, caso contrário nada de positivo resultará daí.

Pessoalmente, não gosto de violência despropositada nos videojogos – aquela violência a que chamamos “gratuita”, porque literalmente não tem qualquer custo. Gosto da violência com uma história – um contexto, um corpo de uma personagem. Só assim consigo estabelecer ligação com a história contada, com a “pele” virtual que assumo naquelas horas, para assim poder projectar e combater os meus demónios. Manhunt foi o jogo que me acordou para esta terapia que descobri. Joguei-o 6 vezes. Devo a essa descoberta estar aqui a escrever e não fechada num quarto branco enrolada num colete de forças ou, pior ainda, fechada numa cela fria de uma prisão, porque havia decidido “explodir” ao invés de “implodir”.

Ter descoberto esta forma de terapia deu-me as armas necessárias para poder ser uma investigadora racional, sem perder a paixão de quem acredita que vale a pena viver. A violência nos videojogos salvou a minha sanidade, a minha profissão, a minha vida de todas as formas que conheço. Sou uma pessoa com o conhecimento das minhas falhas e dos meus limites – mas ainda mais, com a certeza do meu potencial e capacidades. Hoje, os demónios pouco poder têm sobre mim… e cada vez que, distraída, os apanho a sussurar, tentando ressuscitar e trazer de volta a “menina” que quase destruiram, volto a pegar no meu comando. Com ele, destranco as portas do meu Cérebro. Os soldados da minha mente saem armados com as armas que o jogo lhes dá…os demónios acobardam-se. Acordo! Grito! Luto! Lembro-me de quem Sou! No jogo, agora tal como na vida – a Alexa nunca Desiste!