Os lençóis abanavam suavemente ao vento, pendurados no estendal. Decido passar calmamente por baixo deles e olhar em redor para o quintal, nas traseiras de uma casa típica edificada em tijolo. Na relva bem cuidada está um triciclo caído, alguns utensílios de jardinagem, uma mesa e duas cadeiras de esplanada, feitas de uma madeira cuidada e tratada. À primeira vista nada parece estar mal – para além do óbvio facto de não existir uma única alma humana à vista em redor – mas ao avançar mais um pouco detecto alguns pássaros mortos no chão. Mais à frente, um rádio repete uma sequência estranha de números por entre a estática de um sinal fraco, algo que já encontrei em outros locais da vila. Não posso fazer mais do que ligar e desligar o rádio para receber um pouco mais de história. E pergunto: estarei num jogo?
Esta foi a pergunta que fiz a mim próprio ao longo das horas em que explorei a vila britânica de Yaughton. Estarei eu num jogo? Numa visita interactiva? Naquilo que poderá ser o futuro dos livros? A resposta não é fácil, embora seja muito mais fácil definir aquilo que Everybody’s Gone to the Rapture é: uma experiência fantástica com uma enorme beleza que nos transmite um grande sentimento de calma, mas também de espanto.
Nos últimos dois (a três) anos cresceu aos poucos a categoria de “Walking Games”, jogos onde o foco é a exploração e não a interacção. Alguns dos exemplos mais famosos e mais discutidos deste género são Dear Esther, Gone Home, Proteus, The Stanley Parable, Slender, ou Thirty Flights of Loving. Depois o género funde-se com outros porque na sua essência está a jogabilidade na primeira pessoa, o que propicia um cruzamento entre outros géneros e entre níveis de jogabilidade. Em outros casos como Unfinished Swan, o acto de jogar já está muito mais presente o que o aproxima de outras categorias. Mas a discussão em torno deste género de jogos tem sido vasta e desprovida de conclusões.
A discussão mais veemente prende-se com a pergunta se estas obras digitais são ou não jogos. Em algumas destas obras, as possibilidades de interacção e as mecânicas de jogo são tão reduzidas que começa a ser difícil definir a fronteira entre jogo e obra interactiva. Sim, um jogo também é uma obra interactiva, daí que tanta tinta (ou neste caso bits) tenham corrido em defesa, ataque ou simplesmente análise ao género, e que as conclusões sejam parcas. Este género está aos poucos a educar-nos para o jogar, como o jogar, e o que esperar do mesmo. É um claro exemplo de algo que explora os videojogos com uma abordagem nova. Goste-se ou não deste género de obras, é também por aqui que passa a evolução e experimentação da área.
Everybody’s Gone to the Rapture é essencialmente uma obra de exploração. Temos liberdade quase total, e quase não linear, de explorar as várias áreas da vila rural de Yaughton e as suas periferias, todas elas com tipologias naturais diferentes: das vivendas alinhadas e respeitando a mesma traça arquitectónica; aos vastos campos de trigo; ao interior da floresta com os riachos e arvoredo denso; ao campo de férias e campismo à beira de um enorme e calmo lago. Mas este é um local desprovido de vida humana, embora recheado das impressões da sua anterior presença. A população da vila desapareceu por completo, deixando o local intocado e parado no tempo, algures às 18h10 de um dia nos anos 80. Desde o inicio que percebemos que existiu um extermínio da população mas que não provocou os típicos cenários pós-apocalípticos aos quais estamos habituados, com prédios devastados em ruínas e radiação presente no ar. Yaughton permanece intocada, calma, e bela. Muito bela.
O estúdio The Chinese Room (o mesmo de Dear Esther) conseguiu recriar com uma beleza inacreditável o ambiente da ruralidade britânica. Uma atenção ao detalhe incrível e um motor gráfico extremamente realista permitem-nos explorar com espanto todos os pormenores dos locais desenhados, com especial destaque para as áreas de natureza e campo, onde muitas vezes ficamos apenas parados a ver a forma como o sol rompe através das folhas e a forma como o vento abana os campos de trigo que se estendem até ao horizonte. Everybody’s Gone to the Rapture é um forte candidato a estragar-mos o botão de share por excesso de uso, tal a quantidade de vezes que queremos guardar uma imagem do ecrã.
Como jogo, Rapture é limitado, e daí a minha introdução ao artigo. A única coisa que o jogo nos permite fazer é seguir uma forma orgânica de luz que nos vai conduzindo aos locais onde a história se desenrola, ou melhor, já se desenrolou. Neles, vemos então as personagens da história sobre a forma de impressões de luz e ouvimos os seus diálogos e interacções umas com as outras. Juntando todas estas impressões de forma não linear ao longo do enorme cenário vamos acabar por compreender esta história que é muito menos sobre o apocalipse e muito mais sobre as muitas e complicadas relações pessoais num espaço pequeno e onde todos se conhecem.
A experiência que está mais próxima de Everybody’s Gone to the Rapture é a de Gone Home, mas com uma grande diferença: Rapture trata o jogador – ou o espectador – com mais inteligência do que Gone Home. Rapture permite-nos preencher as linhas entre os pontos da história, e apresenta-nos personagens mais densas, com relações mais complexas. Everybody’s Gone to the Rapture respeita-nos enquanto receptores de uma história.
A forma não linear, fora de sequência com que exploramos a história faz-me pensar se não estou perante o futuro do livro. Foi isso que senti em Rapture. Que me tinham colocado no interior de um livro e no qual podia experienciar a história e o seu universo com total liberdade. A quinta do Frank que era descrita na página 7? Posso passear no seu interior com toda a calma, ver como é o quarto do Frank, que livros lê, o que guarda no celeiro. Depois posso ir explorar a igreja onde o padre Jeremy, o mesmo que tenta cuidar de todos habitantes, tenta compreender os destinos do seu Deus. E posso observar os seus momentos finais antes do “apocalipse” e só depois ir procurar os momentos iniciais. Everybody’s Gone to the Rapture não é interagir com uma grande história. É, isso sim, passear no interior de uma grande história.
O melhor: o realismo e a extrema beleza com que é reproduzida uma vila rural britânica e todos os seus ambientes periféricos; a história que nos trata com inteligência; a forma não-linear de seguirmos a história; a excelente banda sonora; a calma que nos transmite o jogo.
O pior: Faltam mais elementos que transmitam informação para além dos personagens (como temos por exemplo em Gone Home)
Em conclusão, Everybody’s Gone to the Rapture é uma das melhores experiências digitais que já experimentei e, sem dúvidas, uma das mais belas de sempre. Será um jogo? Será um grande livro interactivo? Talvez nunca possamos definir e responder a esta questão. Será algo que deve ser experimentado por todos? Sim.
(Everybody’s Gone to the Rapture é um exclusivo PS4)