Já lidei com muitos tipos de feministas, homens e mulheres, assim como já lidei com muitos cristãos; há muitas variantes. Nunca me identifiquei como cristão, mas já me identifiquei como feminista. Agora não o faço, para me proteger de pessoas tóxicas. Mesmo que encontrasse algo com que me identificar no Cristianismo, nunca me identificaria com todo o Cristianismo. Outro exemplo: ninguém de Esquerda se identifica como todos os políticos de Esquerda, nem ninguém de Direita se identifica com toda a Direita. Não gosto de muitos feministas; alguns, na verdade, metem-me medo.

Na minha opinião, o feminismo vai, mais cedo ou mais tarde, tomar conta do mundo; gostava que fosse o feminismo no qual acredito, e não que a misoginia fosse substituída por outro tipo de discriminação. Acho que o universo dos videojogos é dominado por adultos cultural e emocionalmente retardados, e como costuma acontecer neste tipo de meios, questões como esta demoram mais penetrar a esfera da polémica. Há quase um ano, o feminismo “atacou” os gamers, dizem muitos gamers. Embora nenhum dos lados do conflito tenha abandonado a posição de combate nem os seus argumentos, o conflito em si está-se a dissipar. A nível conceptual, o feminismo afirmou-se na esfera dos jogos e veio para ficar; o público, concorde ou discorde das ideias que trouxe, vai pelo menos digeri-las. É isso que está neste momento a acontecer. Estamos na fase de incubação, por assim dizer. E neste momento, quem fala de feminismo e tenta defini-lo na cabeça dos gamers tem muita responsabilidade nas mãos.

Tenho uma amiga quase da minha idade que é dona de casa. Era formada, fez tese, e não trabalhava por opção. Vivia em casa do namorado, limpava a casa, cozinhava; não tinham filhos. O namorado arranjou emprego no estrangeiro, e ela, contra a sua vontade mas sem outra opção, abandonou a sua vida cá. Não podia ir pedir apoio à família, que cortou relações com esta; o pai passou a sua infância e adolescência a mostrar-lhe pornografia. No outro dia, ao conversar com um amigo meu, que me contou que a sua mãe toma anti-depressivos, apercebi-me que conheço muito poucas esposas portuguesas que não tomem medição deste tipo.

A Alexa escreveu um artigo sobre este tema que podem ler aqui. Não discordo necessariamente da maioria do que escreveu. O objetivo deste texto não é contrapor os argumentos da minha colega, e ela sabe disso, mas gostava que os nossos leitores o soubessem também. O que interessa aqui é criar um diálogo, debater, gerar discussão, e visto que isso só é possível com múltiplos pontos de vista, e visto que não há assim tanta gente inteligente a falar sobre o assunto em Portugal, pelos vistos, ofereço mais um.

Falava eu das esposas de Portugal, e diz a Alexa no seu texto que o feminismo nos videojogos é a última preocupação das mulheres, que há contextos em que o assunto é mais grave. Sim, há, mas no fundo estamos a falar da mesma coisa. A mesma lógica cultural que empurrou a minha amiga a reduzir-se a uma empregada doméstica é a mesma lógica que empurra uma mulher a ser booth babe. Não é que ser booth babe seja inerentemente mau, nem estou a depreciar as donas e donos de casa. O problema é mesmo o processo de redução. Num cenário académico, se uma mulher sem pressão cultural resolvesse que o sentido da sua vida era ser booth babe, não haveria problema nenhum; a questão é toda que isto não é um cenário académico, e que não sabemos onde começam e acabam os efeitos da pressão cultural.

A única solução para este problema é pararmos de dar importância à cultura. Pararmos de ter preconceitos, e largarmos completamente papéis de género.

Os papéis de género são especialmente absurdos em ambientes virtuais como nos videojogos, em que o sexo do avatar é uma skin, e que em última instância não tem significado. Porque é que eu quero saber se a pessoa do outro lado da linha é uma mulher ou um homem? Vai jogar de forma diferente?

Admitamos que sim, que as mulheres e os homens comportam-se de forma diferente – que afinal, ninguém é imune à cultura, e que nos encaixamos todos em gavetas comportamentais definidas – porque é que eu quero saber à mesma? Vou agir de forma diferente? Se sim, se há mulheres que agem como mulheres, e homens como homens, ao reagir a isso, em vez de tentar ser o mais indiferente possível, não estou a propagar o problema? Não estou a reforçar que homens são homens e mulheres são mulheres – cada macaco no seu galho?

A Alexa menciona o Kratos, o protagonista sexy semi-nu de God of War, que é um homem, e relativiza o sexismo, quase sugerindo que é direcionado para os dois géneros. Mas não é verdade. O problema, novamente, não é a sexualização. Somos seres sexuais. A maioria de nós gosta de sexo, e mesmo quem é assexual reage a estímulos sexuais. Não vamos armar-nos em neo-victorianos e reprimir a nossa sexualidade; pelo contrário, sou na opinião que não se aborda suficientemente o tema do sexo nos videojogos. O problema é só que há muita mais sexualização e objectificação em geral direcionada para as mulheres do que para os homens. O Kratos é um exemplo anedótico, não é um padrão. O Kratos não assusta; que haja mais Kratos, que haja mais Lara Croft; o que assusta é o padrão.

Quando se diz que o sexo vende, o que se quer dizer é que o corpo da mulher vende. E isso está errado. O corpo da mulher não deveria vender mais que o do homem, isso é sintoma de uma epidemia de repressão sexual. Não digo que as mulheres só têm o direito de ser sexuais na sua vida privada, não concordo, nem acho que tenho o direito de dar direitos às pessoas. Cada um faz o que acha que deve fazer, e vive a sua vida como acha melhor. As mulheres que vendem o corpo não são menos mulheres que as que não vendem. O problema, repito, é o padrão. O problema, por exemplo, é haver uma epidemia de streamers adolescentes que fazem pornografia erótica no Twitch, e serem todas mulheres. Que as pessoas violem a política do Twitch é um problema do Twitch. Que os miúdos, rapazes e raparigas, se habituem que um stream de uma mulher tem que ter um decote no centro do ecrã, que se habituem e reduzam as streamers a objetos sexuais, é um problema de nós todos.

Da mesma forma que não acho que a pornografia seja algo que prejudica inerentemente a mulher. O problema da pornografia é que há poucas mulheres a ver pornografia. E há poucas mulheres a ver pornografia porque se produz pouca pornografia que apele à mulher. Mas isso está a mudar. Tudo está a mudar.

A conclusão que quero trazer a esta discussão é: não resistam à boa mudança, e resistam à má. Há mais mulheres protagonistas em videojogos, por exemplo – é uma boa mudança, equilibra as coisas. Há cada vez mais personagens femininas com personalidades complexas nos videojogos – é uma boa mudança. Há cada vez mais mulheres a trabalhar na indústria – boa mudança. Há cada vez mais gente a denunciar sexismo contra mulheres nos videojogos – uma boa mudança. São só exemplos e não sumarizam de longe esta transformação positiva.

Por outro lado, não gostam de um jogo misógino? – a Alexa diz não comprem – eu digo revoltem-se. Queixem-se, discutam, gozem. Ridicularizem os homens e as mulheres que propagam o sexismo. Uma pessoa que diz que não acha que o Counter Strike devia ter skins de mulher, porque as armas do jogo são pesadas e não torna o jogo realista, não tem o direito de dizê-lo de forma tão relaxada e casual. Só devia dizê-lo com vergonha e/ou à espera de uma reação. Por exemplo, ninguém diz para o mundo relaxada e casualmente que o Counter Strike não devia ter pessoas pretas.

Não ignorem quem diz disparates; desautorizem-nos; humilhem-nos. Sobretudo, lembrem-se que não se trata de uma guerra Mulheres vs. Homens. A base do problema é mesmo que a estupidez não escolhe sexo.

Como escrevi mais acima, acho que quem fala de feminismo nos videojogos tem neste momento uma responsabilidade acrescida. Senti que tinha que escrever este texto.
Deixo também o convite aberto ao resto do staff Rubber Chicken a continuar o debate. Não só isso como convido os leitores e as leitoras que queiram expressar a ssuas opiniões sobre o tema e enviarem-nas para press@rubberchickengames.com.