Há alturas na nossa vida, em que alguém ou alguma coisa nos faz pensar: “Onde é que estiveste toda a minha vida?”. Não é um amor à primeira vista, não é algo que bate forte e rápido mas que com tempo vamos apreciando, e de repente cai a ficha. Esta produção da Muha Games é mesmo assim. Aumenta gradualmente o nosso gosto por ela até que dizemos que não lhe falta nada, é perfeita.
Obviamente nada é perfeito para todos, mas Thea: The Awakening é um jogo excelente para quem gosta dos seguintes estilos: 4x, RPG, Survival, Card Battle, Turn-based, e talvez mais um ou outro que agora não me lembro… e apesar de ser um apologista de que mais vale fazer uma coisa bem do que várias mais ou menos, este não é o caso, são todas bem feitas. Por si só, o 4x está coerente e original. A parte de RPG é clássica e criativa ao mesmo tempo. As cartas, eu compraria em saquetas para jogar com amigos. O turn-base com 4 partes do dia permite uma amplitude mais estratégica porque coisas diferentes acontecem de noite e dia, e a parte de survival… ah… não fica bem sozinha mas encaixa bem nas outras.
A Muha Games é um pequeno estúdio de 4 pessoas, com experiência, paixão e bom gosto em jogos. Apesar de já terem trabalho em grandes projectos como The Witcher 2 e 3, este é o seu primeiro “grande” jogo. E que jogo! Ainda em Early Access, a primeira mensagem que vemos quando abrimos o jogo é algo tipo “Isto está em fase final, não está acabado, portanto tem bugs” que é de valor dizer algo assim só para aqueles que se queixam de tudo e mais alguma coisa. Sabem que ainda têm um pouco de trabalho pela frente e admitem-no, mas mesmo inacabado:
Thea: The Awakening é um jogo difícil, não é para meninos, vai-vos fazer suar, metaforicamente falando. Deixem-me explicar:
O mundo foi envolto em escuridão, chamem-lhe Apocalipse ou o que quiserem, e agora a luz está a voltar, os poucos sobreviventes viram-se para os deuses antigos em busca de ajuda e nós, vamos “encarnar” um desses deuses baseados na mitologia eslávica. Não sei como vai ser na versão final, eu só tinha dois disponíveis quando comecei, e fui desbloqueando outros conforme jogava. Mesmo assim, escolhia sempre o mesmo: Horos, Senhor da Noite e da Lua. Cada deus tem o seu domínio, Zora as Estrelas da Manhã e do Anoitecer, Svarog o Sol e o Fogo, Mokosh a deusa da Vida, Morena as Estações, Veles o Submundo e cada um dá benefícios e falhas ao povo. Portanto, logo no início, temos aquela velha questão de que estilo de jogo (conquista, construção, subterfugio) se associa melhor a nós. E depois de escolher somos lançados no caos. Sim, há um tutorial extenso e muito bem organizado, mas como o setting do jogo é processado aleatoriamente, o jogo não quer saber se estamos no princípio ou nunca jogámos, se calhou ter hordas de criaturas à volta da aldeia. Azar, arranjem maneira de se safar, é por isso que se chama sobrevivência e não prisão domiciliária.
Como na maior parte de jogos 4x, um dos objectivos é recolher recursos e garantir a sobrevivência e expansão do nosso povo, mas em Thea, sobrevivência e expansão não são fáceis. Isso torna o jogo mais desafiante. Nós temos uma aldeia, e é só, não há hipótese (pelo menos ainda não encontrei) de fundar outras noutros terrenos, e dentro da aldeia estamos limitados aos recursos que estão ao seu alcance. Para recolher outros recursos é preciso enviar expedições, que exploram o terreno, e quando queremos montam um acampamento e recolhem o que podem, depois voltam para a aldeia, com o que conseguem carregar.
A gestão das expedições é complexa, muito mais do que parece à primeira vista. A aldeia tem uns 9 a 10 habitantes, todos eles com estatísticas e profissões diferentes, às vezes 1 ou 2 crianças que vão crescer. Portanto, uma aldeia a sério. Temos guerreiros, curandeiros, sábios, agricultores, construtores. E temos que enviar parte deles em expedição. A dificuldade está em quais? Equilibrar é muito difícil porque tudo o que deixamos para trás pode ser necessário tendo em conta que não sabemos o que vamos encontrar. Deixamos um guerreiro na aldeia e levamos 4 e um agricultor? Como vamos recolher recursos se eles assim levam 8 a 10 dias em cada um para o fazer? E se a aldeia é atacada enquanto os guerreiros não estão? Levamos o único médico ou deixamos ficar? O velho sábio é inútil em batalhas? Mas se encontramos criaturas desconhecidas ele pode ser a única pessoa que comunica com eles. Quanta comida levamos? Complicado, não é? E, para mim, com um problema adicional, todos eles têm nomes e imagens próprias, e eu crio uma ligação pessoal com eles. Detesto quando personagens com nome morrem nos meus jogos.
Esta variedade vai ter influência em todo o jogo, todas as decisões criam caminhos diferentes, e eu adoro encontrar situações em que vejo por baixo “only 2 of 5 options available” sabendo que se eu tivesse chegado ali com outros personagens, seguindo outros caminhos, seria diferente. Pensando nisto aliado aos deuses diferentes e aos mapas gerados aleatoriamente, Thea tem um valor de replay incrível.
Até coisas que parecem não ter grande relevância podem ser muito importantes. Num dos meus jogos, uma cegonha foi vista na minha aldeia, podia ter mandado alguém matar o bicho para recolher a carne, mas escolhi não o fazer. Na manhã seguinte, estava um bebé no campo das couves, que cresceu, tornou-se curandeiro e salvou muita gente na aldeia. Decisões e consequências, acção e reacção, Thea está cheio disso.
Caso não tenham entendido ainda, eu gosto imenso de Thea, contudo a minha parte favorita é a das batalhas de cartas, um jogo complexo e simples ao mesmo tempo, que se fosse vendido em lojas estaria ao nível de Magic, Pokemon ou Yu-Gi-Oh!. Às vezes dou-me ao trabalho de desviar as minhas expedições de uma linha recta, para poder fazer umas lutas, tal não é o vício das cartas. Pensando bem… felizmente não são vendidas separadamente…
Isto já vai longo, e eu podia fazer um artigo acerca disto em duas partes com tanto que tenho para dizer sobre ele, mas acho que vou ficar por aqui, dizendo apenas uma coisa:
Este jogo está no meu top 5 do ano 2015, não sei se vai ser o meu GOTY, mas está na final. E tal e qual um certo pássaro livre, pode tornar-se um clássico.