Tenho de começar este artigo com uma entrada de concordância com o histórico jornalista de videojogos português, Nelson Calvinho, que me alertou há meses para a minha insistência no termo “aventuras-gráficas”. Compreendo a posição do Nelson e a justificação, de que os jogos de aventura pós-período de text-based adventures são todas aventuras-gráficas por omissão, e por isso, a grande esforço e combate à força do hábito, vou começar a tentar dirigir-me ao que é possivelmente o meu género favorito como “jogos de aventura” ou “jogos point-click”. Ainda que, a título pessoal e familiar, continue a descrever alguns jogos como “aventuras-gráficas” para facilitar. Mas em texto prometo que vou tentar refrear-me de dizer “aventuras-gráficas”. Quantas vezes é que já disse “aventuras-gráficas” neste parágrafo? Cinco.
Dropsy é um regresso ao passado, à Era Dourada das aventuras point-click em que os jogos da LucasArts não só eram obras culturais exímias como serviram também para educar gerações de jogadores exigentes. A primeira surpresa desta aventura trazido até nós pela Devolver Digital é a verosimilhança com todos os jogos geniais que recebemos a correr no motor SCUMM. Se alguém me dissesse: “sabes que este jogo esteve feito desde 1995, corre no famoso motor desenvolvido pelas LucasArts e só hoje, passados 20 anos, viu a luz do dia?”. Eu responderia de imediato “Sim, acredito”. Não só porque o jogo capta na perfeição toda a essência dos jogos do género de há duas décadas atrás, como o seu autor desenvolveu a arte inicial quase toda em MS Paint. Dedicação à nostalgia mais profunda que esta, é difícil de encontrar.
A par de muitos dos jogos da época que não dispunham de voice acting, também Dropsy apostou em forte na sua banda-sonora como forma de integrar o jogador no jogo. Genialmente composta, toda a banda-sonora não só vive por si só (que até tem servido de faixa musical para os meus dias de trabalho) como representa na perfeição a não-vocabularidade do jogo. Em Dropsy não existem palavras, não existe texto nem diálogo convencional,e toda a comunicação do jogo é feito ora de iconografias ora das alternâncias dos diversos trechos sonoros que o acompanham.
É inegável que Dropsy me surpreendeu, numa fase do mercado independente que soa a uma nouvelle vague do género, com muitos dos actuais indie developers a recriarem uma fase tão marcante dos videojogos e que decerto os influenciou enquanto jogadores e enquanto criadores. Fiquei tão impressionado com o jogo que até o incluí no primeiro episódio do nosso programa Foi Bom, Não Foi?.
O misterioso enredo deixa-nos com margem e margens de interpretação tão díspares que nos deixam a reflectir sobre o protagonista, o seu passado e o seu presente para além dos limites do jogo. Dropsy é um palhaço com um ar assustador que daria pesadelos até a quem não sofre de coulrofobia. Mas a contrastar com o seu aspecto, rapidamente percebemos que tudo o que ele deseja é tornar o mundo e as pessoas que lá vivem num sítio melhor, feliz. Um abraço verdadeiro de todos os personagens (e não só) com que nos cruzamos é o objectivo da resolução de todos os puzzles. O que cada pessoa quer para se sentir feliz depende de cada personagem. Entre um personagem que quer uma sandes, outra que quer uma flor e ainda outro que quer ver um alienígena, há uma disparidade quase surreal entre os diversos puzzles que oscilam entre resoluções e outras tão encriptadas que quase relembram a abordagem do primeiro Sam & Max.
Quando dormimos visitamos um mundo estranho que reside na mente de Dropsy. Não sabemos se o psicadelismo dos seus pensamentos, aliados à sua figura disforme e à sua incapacidade de comunicar com as pessoas à sua volta não são representativass de algum atraso de desenvolvimento e/ou mental, mas deixa-nos, mais uma vez, abertos a interpretações. Mas há uma inocência inquestionável em Dropsy, que contrasta com tudo isto e que cimenta ainda mais todas as explicações que possamos dar. Até o seu fiel cão, que também podemos controlar (tal qual outro grande jogo do género lançado este mês, Armikrog) realçam esta ingenuidade do protagonista, e que embatem directamente na total bizarria da sua construção enquanto personagem.
Dropsy é uma boa aventura-gráfica, com interface simples a relembrar o que de melhor a LucasArts e a Sierra fizeram. É um óptimo jogo hoje, assim como seria um belíssimo jogo em 1992, e de certeza ainda será um grande jogo em 2030. Um jogo que vale por si só, mas cujo significado, esse, pertence apenas a cada um de nós.