Análise a The Magic Circle.
Excerto:
[…] The Magic Circle e “The Magic Circle” são mais parecidos do que deviam.
Introdução e conclusão:
The Magic Circle é mais um caso, entre tantos, de um jogo que não é tão bom como um todo como a sua narrativa. Destaca-se, no entanto, por se tratar de um caso especialmente trágico.
A análise em si:
The Magic Circle é um videojogo sobre fazer videojogos. É também uma caricatura do processo de criação de videojogos, e dos seus criadores.
O enredo de The Magic Circle centra-se na produção de um jogo chamado “The Magic Circle”. O título homónimo desses dois universos encaixados é uma referência ao trabalho de Johan Huizinga, um pioneiro na análise filosófica e antropológica do conceito de “jogo”. Um círculo mágico, segundo Huizinga e como The Magic Circle explica, é um espaço próprio, com regras próprias, que transforma a realidade à sua volta. The Magic Circle passa-se nos níveis inacabados de “The Magic Circle”; The Magic Circle seria “The Magic Circle”, para todos os efeitos, se os seus autores não violassem a quarta parede a toda a hora. O jogo insiste em pisar constantemente a linha do seu próprio círculo mágico e sair do mesmo – ou dos seus círculos mágicos, que há várias camadas estruturadas de transgressão estrutural. Este videojogo é para os videojogos, em termos de violar a quarta parede, o que um open office é para um palco de teatro – não há quarta parede imaginária, não há parede nenhuma, nem é suposto haver; a ausência de paredes é a própria lógica interna do espaço.
Apesar dos seus limites imaginários serem baseados na violação de limites imaginários, no entanto, e de isso ser difícil de explicar por escrito, o universo de The Magic Circle é bastante simples de se compreender diretamente. Neste enredo há quatro personagens-chave, tirando o protagonista: Coda, Maze, Ishmael, e uma entidade misteriosa. Ishmael é um artista arrogante; os videojogos que cria são o trabalho da sua vida, e têm que estar ao seu nível: têm que ser perfeitos; não só é perfecionista ao ponto da contra-produtividade, de controlar cada detalhe, tem tanta necessidade de autoridade que não se importaria de controlar os próprios jogadores: os universos que cria não existem para serem explorados pelos jogadores, os jogadores é que são pormenores nos seus universos. Maze é uma pessoa pragmática, que quer um produto feito, nem que seja da prior forma; Maze já não está, ou nunca esteve, apaixonada pelo trabalho que faz; no entanto, se não fosse pela sua influência, a produção de “The Magic Circle” não avançaria; se dependesse somente de Ishmael, não haveria nada feito, nem nunca iria haver. Maze e Ishmael não são só dois extremos de um espectro, são duas possibilidades: duas pessoas nas quais Coda se pode vir a tornar; Coda é mais nova, tem uma reverência quase religiosa pelos videojogos com os quais cresceu e pelos autores dos mesmos; entrou no negócio da produção de jogos porque adora jogar; a sua motivação é sustentada por um amor idealista e quase doentio.
Estas três personagens, para além de uma tricotomia psicológica, de uma representação interessante do espaço mental do criador de jogos, são uma representação ainda mais interessante das dinâmicas entre criadores, numa equipa. Mais ainda – fora de “The Magic Circle”, estas pessoas também são uma equipa, mas dentro, são deuses; andam pelo mundo a alterar “leis” da física e modelos 3D, corrigir bugs, falar com playtesters, entre outras coisas.
Os jogadores assumem o papel de alguém que desafia os deuses – que tenta tirar “The Magic Circle” do development hell em que se encontra, por causa destes – guiado por uma entidade já mencionada acima, da qual pouco se sabe, que quer conhecer o mundo dos deuses, dos jogadores, que quer sair do seu círculo. O último puzzle do jogo é brilhante: criar uma demo de “The Magic Circle” que seja equilibrada – que não aborreça os jogadores hipotéticos, mas que não seja demasiado difícil – numa espécie de editor que lembra jogos como Dungeon Keeper.
O que é trágico acerca de The Magic Circle (mas que está em harmonia com a imagem de um jogo que viola as suas próprias regras), é que os seus autores não souberam aplicar aquilo que ensinam nesse último nível. Os primeiros minutos são lineares, depois disso os jogadores movimentarem-se em espaços livres mas contidos, e mais cedo ou mais tarde são soltos num espaço enorme, sem clara indicação de onde está o quê, para que serve, do que é um puzzle e do que não é; a área é tão grande que o jogo introduz fast-travel. Isso não resultaria em problemas de pacing num jogo mais introspetivo ou abstrato, mas aqui não é o caso; o equilíbrio aborrecimento-dificuldade oscila e perde-se. A mecânica principal é reprogramar o mundo de jogo. Todas as criaturas com inteligência artificial e mesmo certos objetos podem ser reprogramados pelos jogadores – podem mudar quem estes protegem, quem atacam, como se deslocam, entre outras coisas; essas propriedades, por outro lado, são escassas. No papel, parece uma ideia genial, mas na prática não senti que fosse. A mecânica é tão meta como o resto do jogo é um eco dos seus temas, mas não está bem explorada, parece que os elementos de jogabilidade foram pensados e acrescentados posteriormente ao jogo já estar feito.
É óbvio que The Magic Circle não está tão incompleto como “The Magic Circle”; mas nem podia, por outro lado – para um videojogo simular perfeitamente outro videojogo, talvez o primeiro tenha que ser perfeito, por mais imperfeito que seja o segundo – talvez The Magic Circle tenha (ou tivesse) que ser perfeito; imitando o seu próprio estilo paradoxal, imitando-se a si próprio, tem talvez o dever de ser um conceito impossível.
Tenha ou não, infeliz e tragicamente, The Magic Circle e “The Magic Circle” são mais parecidos do que deviam.