Por vezes surgem aquelas coisas que, apesar de serem mesmo muito estúpidas, nos fazem questionar outras coisas relevantes. O dilema surgiu num website que permite gerar um top de jogos pessoal, respondendo a perguntas que comparam todos os pares de jogos na sua base de dados, quando me pediram para escolher entre Journey e Shadow Of The Colossus com base na minha preferência.

choice1

Um-dó-li-tá

Uma pergunta simples para muitos, de certeza. Porém, o facto de ambos os jogos alcançarem duas coisas diferentes por meios congruentes leva-me a achar que a decisão não é tão directa quanto isso. Por momentos, a pergunta feita pelo website tosco tornou-se numa escolha, não de Sophie mas do Bernardo, apesar de se fazer sentir como a de Sophie.

Sophie3

Cena do filme Sophie’s Choice, quando pedem a Sophie para escolher ficar com apenas um dos seus filhos.

Quero também com este texto invocar uma rubrica. Certamente farei este exercício mais vezes, mas sem qualquer periodicidade pré-estabelecida.

Gostaria também de esclarecer, antes de começar, que não há qualquer relação entre a idade da obra e a sua qualidade. Como se não bastasse, o que se está aqui a discutir são preferências com conhecimento do que é factual. Como tal, falarei sobre as coisas que unem e distinguem estes dois videojogos, podendo perceber entre que elementos de jogo recai o desempate. Joguei ambos os jogos pela primeira vez nos últimos seis meses, portanto tudo se mantém relativamente fresco na minha cabeça.

No que convergem

Shadow-of-the-Colossus

O emblemático trabalho de Team ICO será o ponto de partida da nossa jornada.

Fumito Ueda trouxe para o game design, com Ico, um conceito com que veio mais tarde a apelidar de Subtractive Design. Muitos de vocês já sabem no que consiste, no entanto, passo a explicar:

Subtractive Design: Método para design de videojogos. Consiste no processo iterativo (com guarda a critério livre) das seguintes acções:

  1. Conceber, desenvolver ou arranjar o/um jogo;
  2. Definir ou redefinir objectivos;
  3. Cortar conteúdo irrelevante do jogo para atingir os objectivos do ponto 2.
subtractive design

Fraca interpretação de design subtractivo definido neste artigo. Ou não.

Este processo, além de ter estado presente no desenvolvimento de Shadow Of The Colossus e Ico, deixa uma mancha bastante clara no produto final e, na minha opinião, beneficia-os imenso. Especula-se que terá sido isto que esteve por trás da ausência de determinados gigantes desenhados para SotC e sabemos (pelo próprio Ueda) que teve influência no combate de Ico, que era muito mais detalhado e complicado. Se o jogo não beneficiar de uma mecânica, logicamente deverá ser cortada com desrespeito a todo a trabalho que foi necessário para a implementar e para respeito para com a obra e o espectador.

journey

Journey é claramente influenciado pelos jogos da Team ICO. Dizer isto é fácil, mas poucos conseguem reconhecer essa inspiração. Traduz-se também, além de contraindo o Subtractive Design claramente evidenciado no jogo e argumentado no making of de Journey, na evolução da narrativa. Journey usa o conceito de Hero’s Journey para desenvolver a sua narrativa, da mesma forma que SotC o faz de forma mais subtil.

Hero’s Journey: Estrutura particular de narrativa. Consiste em diversas fases:

  1. Nascimento – Apresentação do setting e personagens
  2. Chamada – Apresentação do problema
  3. Ajuda – Procura pela solução
  4. Teste – Dificuldades da concretização da solução
  5. Tentação – De desistir
  6. Transformação – Culminar do trabalho e da dedicação

Esta definição foi ligeiramente adaptada e concretizada para ir ao encontro da estrutura de Journey, visto nenhum conceito estar (na prática) protegido contra alterações e reinterpretações.

Enquanto em Journey estas seis fases representam literalmente cada um dos seis actos que este contém, SotC faz isto de forma mais volátil e menos rígida (como vou aprofundar quando for falar no que distingue ambos os jogos), mas faz.

Heroes journey

Representação clássica desta estrutura narrativa.

Quanto à banda sonora e aspecto do jogo, claramente convergem, talvez por serem desenhadas de acordo com o game design subtractivo. Por exemplo: as paisagens são vazias de forma a contrastar com os artefactos e elementos relevantes para a narrativa. Deixo este trabalho como TPC do leitor (Sugestão: Dado b pertencente a integral sobre A, escrevam uma equação integral de grau mínimo satisfeita por b).

Certamente Journey e Shadow of the Colossus convergem em muitas outras coisas, mas as que aqui escrevi parecem-me as que tomam mais influência nas obras.

No que divergem

A principal coisa em que Journey e SotC divergem são a sua mensagem. Obviamente que há todos os elementos mais superficiais como as personagens e linguagem, mas confesso que gosto de ir a um nível de interpretação mais profundo. Enquanto SotC é uma história de amor, trabalho e dedicação, Journey é uma ode à vida e às viagens que a compõem.

No início de Journey é apresentado um ponto de fuga (remetente para o conceito de ponto de fuga em desenho) algo segundo o qual, independentemente da nossa posição, nos devemos orientar segundo a sua direcção. Perante isto, o protagonista é forçado a atravessar passivamente tudo o que se põe pelo seu caminho. Não há uma interacção directa e quando esta é mais explícita, acaba por não ter consequências quantificáveis (ninguém morre nem fica brutalmente ferido). As coisas quase que vão acontecendo à velocidade que o protagonista se desloca pelo mundo e isso é o que faz com que não haja uma uma sensação de dificuldade a ser transmitida, mesmo quando as coisas se tornam mais difíceis para o seu lado. No entanto, em cada local que atravessamos, uma imagem clara é concebida gradualmente na nossa cabeça. E o facto de cada um destes ambientes ser tão memorável gráficamente faz com que, no final, a viagem realmente tenha um impacto e um significado maior.

Journey-Screen-SevenJourney e o seu (pretensiosamente definido como) ponto de fuga

Em Shadow of the Colossus o paradigma é bastante diferente. Sendo o ponto de fuga o objectivo do personagem (ressuscitar a pessoa que ama, independentemente das consequências), cada coisa que se põe pelo seu caminho é um grande desafio com consequências relevantes (ou seja, um ecrã de game over), remetendo para a ideia de dificuldade e mais tarde um sentimento de conquista. Porém, a cada conquista a personagem vai perdendo vida, evidenciado pelo seu aspecto, pela sua aparência.

Apesar de, num todo, SotC remeter para uma estrutura de Hero’s Journey, cada “missão” para cada colosso acaba por reflectir uma Hero’s Journey por sí só (remeto para o diagrama acima sobre o conceito). Isto, além de contribuir para a ideia de dificuldade, intensifica o sentimento global e o objectivo do jogo: levar-nos a reconhecer o quão longe conseguimos levar os nossos objectivos por amor ou por dedicação e o quão doente essa procura se consegue tornar.

este os matadores...

O conceito de escala e iteração exaustiva do processo intensificam a ideia de dificuldade induzida no jogador.

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E é assim que termino este artigo. Esta comparação estruturada ajudou-me a perceber melhor o que cada uma destas obras é, e de que forma são ou não comparáveis. Não me ajudou certamente a escolher, pois essa tarefa vou deixar a vosso critério. Porém, espero com este artigo ter vos feito pelo menos questionar o que davam como adquirido.

No entanto, gostaria de esclarecer que a minha escolha acaba por recair em ambos, isto é, que sinto-me da mesma forma em relação a ambos. A altura em que joguei Shadow of the Colossus foi bastante delicada para mim e significou imenso, e o mesmo aconteceu mais tarde por motivos diferentes, com Journey. Acho que o que retirei de escrever este artigo foi uma aspiração em definir um conceito que mais tarde pensei que poderia ser apelidado de obra perfeita, mas deixarei isso para outra altura, outro texto e possivelmente outras bandas. Obrigado por lerem!