Tarefas simples, rotineiras, repetitivas, monótonas, como os jogos casuais nos habituaram na última década, a responder a estímulos de forma concertada, no melhor sistema fordista emocional. Regar uma árvore, ver um fruto brotar, esperar alguns segundos, regar mais um pouco, deixar o fruto amadurecer e colhê-lo, regar a árvore novamente, num sistema circular, em que desligamos o cérebro e clicamos no rato ritmicamente a compassar o total adormecimento da consciência. Momento esse em que passamos a funcionar nas funções mínimas, e o entorpecimento da repetição mantem-nos cativos durante minutos que se transformam em dias, dias que se transformam em horas e assim sucessivamente.
É esse entorpecimento o segredo de muitos jogos casuais de browsers e redes sociais e que contribuíram com avassaladores lucros para muitas companhias, dos quais a infame/adorada Zynga* é um dos topos do icebergue. Os clicker games são outros jogos que nos mantêm reféns da sua sua ínfima ou nula jogabilidade, dando-nos pequenas recompensas por uma tarefa que não é mais do que a progressão matemática de dígitos encapotados como jogo. E ainda há pouco tempo referi que já tive guilty pleaures semelhantes.
Há algo que nos distingue cultural, social e geograficamente de outros povos que coabitam connosco este planeta. E se há algo que a globalização, contida dentro de todos os malefícios que nos tem causado enquanto civilização, há algo que eu gosto de valorizar: a percepção e génese de ideias e conceitos que só fazem sentido nascidas dentro de um contexto específico, e contactar com essas mesma ideias e conceitos tão distintas das nossas.
Peguemos então em todas as mecânicas dos diversos clickers, ou do mais casual e pragmático Farmville e façamos uma mudança simples, conceptual, mas cujo impacto no resultado final é infinitamente divergente da ideia que temos para um qualquer jogo de jardinagem. Reguem uma árvore, vejam um fruto nascer, reguem essa árvore novamente, vejam o fruto amadurecer, reguem finalmente a árvore e colham o furto já amadurecido. O vosso fruto não é fruto, é um rim humano.
É este o pequeno gigantesco twist de Forget Me Not: My Organic Garden, do estúdio japonês CAVYHOUSE, um simulador de loja/jardinagem, e um clicker na sua essência mas que cria um ambiente dicotómico entre a estranheza, a bizarria e a morbidez da temática e a simpatia, a alegria e a boa-disposição presente em todo o jogo.
Quando há pouco falava das diferenças culturais entre as diveras localizações geográficas, refiro-me ao enriquecimento tremendo que estas abordagens distintas produzem num meio artístico como o dos videojogos. E para mostrar a décalage e a diferenciação entre ambos transponho a abordagem do mesmo objecto entre o seu original nipónico e a adaptação norte-americana. Ringu, filme de 1998 realizado por Hideo Nakata é um filme de terror sobejamente conhecido, que foi adaptado nos EUA por Verbinski em 2002. Na versão original, no encerramento do filme, a protagonista percebe que para libertar o seu filho da maldição – e perante o ciclo inquebrável desta – terá de a passar para outra pessoa, para que fosse esse sucedâneo a morrer ao invés dele. O filme termina com ambos a dirigirem-se para casa do pai dela, para que a maldição que assola o seu filho seja transferido para o avô. Na versão norte-americana, a protagonista é salva da maldição porque fez uma cópia e fica em aberto se terá de a mostrar a alguém, ou se o chega a fazer. A grande destrinça entre estas duas abordagens é acima de tudo cultural: o pragmatismo e a disciplina nipónicas (que alguns apelidariam de frieza) versus a necessidade heróica dos finais felizes norte-americanos. É claro qeu nestas considerações estamos a partir de pressupostos estereotipados sobre as diversas culturas, mas há, sem sombra de dúvida uma gigantesca influência do contexto sócio-cultural na forma como os criadores abordam a obra.
Forget me Not: My Organic Garden, em toda a sua depuração visual e mecânica alcança algo diferente: consegue aligeirar o tom a toda a temática do jogo e aos diversos clientes que nos abordam na loja. Num clicker simples os seus autores conseguiram trazer uma dimensão adicional, e que torna essa a recompensa pela jogabilidade contínua: o enredo que ainda que apresentado em pequenos trechos de 3 a 4 linhas de diálogo, confronta-nos com pequenas histórias que poderiam ser micro-contos, e que colidem com a imagem que temos de uma loja/estufa que cultiva órgãos humanos, órgãos esses imbuídos de alma e com a capacidade de animar objectos ou seres mortos.
A primeira cliente é uma menina que adora a sua boneca, e que procura um rim de qualidade excelente para que ela ganhe vida e a acompanhe. O segundo cliente um rapaz com um gato, vivo, que está disposto a matá-lo e a inserir-lhe um coração novo, e consequentemente uma nova alma. É aqui que nos é explicado que não é permitido inserir órgãos cultivados em seres ainda vivos, porque a alma do portador colidiria com a alma dentro do órgão, o que levaria à destruição do hospedeiro. O terceiro cliente, e o mais estranho, quer um certo volume de carne picada feita de órgãos triturados para alimentar os gatos que tem em casa. Tudo isto apresentado com uma iconografia simples, que não fosse o contexto do enredo e ser-nos-ia impossível de perceber o impacto e o quão tétrico é na verdade, o jogo. Entre os sorrisos da nossa protagonista, da sua patroa e dos diversos clientes, que ajudam a criar um ambiente em que a criação artificial (ou orgânica?) de órgãos humanos passa a ser algo normal, simples e aceitável.
De todo o contacto que já tive com manifestações artísticas nipónicas, acredito que este pequeno grande twist só seria mesmo possível de ter proveniência no Japão. Este equilíbrio bem-conseguido de uma história banal de uma loja que se apresenta como um mero clicker, em que na sua descrição bastar-nos-ia substituir rim, coração e estômago por banana, maçã e ananás e tudo pareceria uma história típica. Mas esta liberdade pragmática que os japoneses têm, libertos de algumas constrições culturais que muitos de nós-ocidentais, e especialmente os latinos temos, é um excelente exemplo do que se passa no mercado indie asiático, e do qual começámos a descortinar suavemente na Caçada Semanal desta semana.
E olhando só para as imagens, dificilmente alguém associaria a temática à apresentação. E é nessa surpresa experimental que reside o interesse conceptual deste Forget me Not: My Organic Garden.
* adorada por uma demografia específica