“O maior problema na comunicação é a ilusão de ter ocorrido”
George Bernard Shaw
É uma decisão pessoal, aquela que conduz a forma como David Cage decide assinar o final de Beyond: Two Souls, quando sobre o negro surge: Escrito e Realizado por David Cage. É também apenas uma de um conjunto de várias ilusões do criador, sendo a menos grave a ilusão de grandeza. O mais grave em David Cage, nomeadamente em Beyond, é o facto de não perceber que não consegue comunicar com o público. Beyond: Two Souls não é um diálogo. É um monólogo.
Num vídeo recente, no qual David Cage discorre o seu habitual discurso sobre a sua forma de ver a narrativa de forma diferente – mas que espremido como se fosse um pano da louça a única coisa que pinga são um conjunto de frases feitas que podiam ilustrar imagens superficiais com filtros de Instagram – podemos observar uma área de trabalho do espaço do estúdio Quantic Dream, onde na parede estão instaladas enormes letras com a palavra: Emotion. A expressão, tornou-se motivo de chacota quando associada a Cage durante todo o período de desenvolvimento e promoção de Heavy Rain e de Beyond. Mais polígonos, logo mais Emotion; mais escolhas, logo mais Emotion; melhores actores, logo mais Emotion. Cage parece estar para a Emotion assim como Molyneux está para o Game Design: ambos nos prometem o próximo passo, embora entreguem sempre algo que já é terreno pisado por muitos.
Porquê este assunto agora? Porquê trazer de volta um assunto que já tinha morrido? A razão é simples: tentaram ressuscitar o morto com o lançamento de um remaster de Beyond: Two Souls na PS4. O resultado é um nado-morto, um jogo que já todos sabemos que já não o era antes de ser regravado em novos discos, metido em novas caixas ou “re-disponibilizado” em formato digital.
Confesso que apenas joguei as primeiras duas horas de Two Souls quando foi originalmente lançado na PlayStation 3. Infelizmente para ela, foi à Maria João que coube jogar todo o jogo para o analisar. A mim foi-me dada a possibilidade de desistir, algo que fiz após irritações constantes com o esquema de controlo do jogo. Ficou decidido que não voltaria ao jogo de Cage mas há dois meses a Sony mudou isso ao enviar-me um código de análise da versão remasterizada. Desta vez resolvi jogar a experiência por completo para que não me criticassem o facto de ter uma opinião negativa sem ter nunca experimentado o jogo por completo. O que se seguiu foi uma irritação constante, crescente, exponencial. O David Cage game designer – ou pelo menos a réstia da função que ainda reside no homem – até tinha um bom jogo nas mãos; mas o David Cage “escritor” e “realizador” consegue destruir toda uma obra.
Heavy Rain foi o ponto de equilíbrio de Cage. O balanço conseguido entre jogabilidade, narrativa e o aspecto “emocional” foi um avanço nos videojogos. Não foi revolucionário – que David Cage quando fala das suas inovações mostra que não deve acompanhar o mercado dos jogos independentes – mas foi um bom passo nos jogos ditos blockbuster. O jogo seguinte deveria ser a evolução natural de Heavy Rain, uma análise do que melhor resultou e do que não funcionou, a informarem o desenho da obra seguinte. Em vez disso temos o surgimento do “realizador”, embriagado pelo acto de dirigir actores de topo, de escolher posições de câmara, a esquecer tudo o que aprendeu no passado como game designer.
Beyond: Two Souls faz quase tudo mal e muito pouco bem. Os erros são vários e não é necessário um grande conhecimento para os identificar. Analisemos os principais para verificarmos de seguida que todos eles têm algo em comum:
- A entidade sobrenatural no jogo está sub-aproveitada como mecânica de jogo. Aiden, o apêndice espectral da nossa protagonista, possui um conjunto muito limitado de acções e possibilidades que se repetem ad nauseum ao longo do jogo. A utilização das capacidades de Aiden é necessária em praticamente metade da jogabilidade total de Beyond, mas ao contrário de grandes apêndices fantasmagóricos como os usados no Jackie Estacado de The Darkness ou no Paxton Fettel de F.E.A.R. 3, aquele que usamos em Beyond está desprovido de qualquer sentimento de recompensa após duas ou três utilizações.
- Na tentativa de contar a história de forma não linear, Cage desequilibra por completo todo o jogo. Alterar a ordem cronológica dos eventos pode ser uma grande ferramenta de escrita para conseguir atingir uma metáfora maior no final de uma obra, seja ela livro, filme ou jogo. Em Beyond, no entanto, a troca de ordem serve apenas para tentar camuflar o facto da história ser desinteressante, banal e cliché caso o jogo estivesse na ordem correcta (algo que o remaster permite fazer e que coloca a nu essa falha do jogo). O jogo regressa constantemente a capítulos nos quais apenas desempenhamos actividades mundanas como ver televisão, vestir um vestido ou olhar pela janela e qualquer noção de estrutura é deitada por terra. Conforme os capítulos avançam, cada vez menos nos vamos preocupando menos com as personagens. Qualquer bom escritor teria percebido isto.
- A utilização de um sistema de controlo que tente mimetizar as acções que são feitas interrompe constantemente a nossa atenção. Como quer Cage que eu mantenha a minha suspension of desbelief, o meu interesse, ou a tão desejada entrega emocional, quando entre violinos, lágrimas digitais e set pieces que tentam ser épicas tenho que premir R1 + L1 + X + O?
Todos os erros conduzem ao mesmo erro principal: Cage sobrepõe o filme ao jogo. O jogo é em Beyond sempre algo secundário e serve os propósitos do realizador David em querer contar uma história. Perdido na sua demanda pela inovação e emoção Cage esquece constantemente o formato no qual está a trabalhar. David deve sentir-se um Dom Quixote, lutando contra os moinhos dos cépticos da indústria e de todos aqueles que não são visionários como o próprio. Mas Cage é apenas um Sancho Pança, o personagem banal e aquele que é o senso comum. David Cage constrói um senso comum em Beyond, isto é, uma sucessão de colagens de lugares comuns narrativos.
Quando Beyond foi originalmente lançado para o mercado, depois de três anos de “Emotions”, já outros jogos, de forma muito mais silenciosa – e muito menos prepotente – traçavam nesses anos o caminho que David procurava. Brothers: A Tale of Two Sons, The Walking Dead, Thirty Flights of Loving, Spec Ops: The Line, entre muitos outros foram fazendo tudo o que David dizia não existir na indústria. Quando Beyond saiu, Cage multiplicou-se em entrevistas afirmando tudo sobre o seu jogo menos aquilo que realmente era: uma peça obsoleta.
O discurso presente nos comentários mais recentes de David Cage preocupam-me. Assim como nas entrevistas do pós-Beyond, Cage não entende que tenha feito algo de errado. Antes pelo contrário, é o seu público que não compreende a visão de David. Mais uma vez, regressando ao arranque deste texto, David não percebe que é ele que não consegue comunicar, embora uma audiência gigante esteja a tentar sem sucesso ouvi-lo.
Detroit: Become Human tem tudo para ser um grande jogo, com a premissa e o universo no qual decorre, onde os andróides servem para nos servir. Mas se o remaster de Beyond é um nado-morto, Detroit é uma gravidez de alto risco. É que certamente, Detroit já possui uma má formação grave do feto e ainda vamos no início a meio da gravidez. David Cage deve estar apostado em inovar narrativamente, porém, conhecendo David, isso deve significar que neste momento ele tem um I, Robot, um Ex-Machina, um Blade Runner, assim como muitos outros filmes que já exploraram o tema misturados uns nos outros.
Cage deve estar novamente embriagado a dirigir Jenifer Lawrence e que mais gigantes tenha no elenco, enquanto uma parte da equipa, provavelmente menos acompanhada e à qual não se presta tanta atenção como na sala da captura de movimentos, vai tentando implementar um jogo na história que David está a escrever e realizar. Outrora um dos elementos mais promissores da indústria, Cage ameaça dar a machada final na sua carreira de game designer com Detroit. Mas talvez seja isso que David quer. Se Become Human falhar como jogo, Cage pode finalmente confirmar que nenhum de nós acompanha o seu génio visionário e finalmente seguir a carreira no cinema que sempre deve ter sonhado. É que esta malta dos que jogam não o percebe. Pena que David não perceba também.