Poderia falar das excelentes mecânicas de Strategy RPG que a primeira parte da trilogia The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel tem, ou do excelente visual que se equipara a uma boa série de anime, ou à facilitadora capacidade de crossplay entre a PS Vita e a PS3. Mas estaria a ser redutor, porque Trails of Cold Steel tem algo que muitos congéneres não têm: densidade.
À superfície, Trails of Cold Steel contem todos os clichés típicos da cultura pop nipónica. Desde o misterioso protagonista cujo passado pouco se conhece, até à inclusão de personagens femininas estereotipadas como yanderes, tsunderes e danderes (obrigado Leonel pela aula teórica de personagens-tipo da cultura japonesa contemporânea). Mas estes estereótipos, assim como o visual (e o setting) steampunk deste mundo, que mescla, de forma bem conseguida, a fantasia e a tecnologia, estão aqui para permitir que esta última trilogia de The Legend of Heroes consiga chegar a um público massificado (dentro das constrições comerciais próprias do género é claro).
O enredo de The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel centra-se numa escola militar de Erebonia, uma nação em pleno conflito armado, o que em muitos aspectos justifica a necessidade da preparação bélica para adolescentes. Dezenas e dezenas de jovens provenientes de diversas regiões de Ereboria confluem para a academia para iniciarem a sua formação. Mas ao invés da ligação entre os diversos personagens limitar-se a relações de amor e amizade, e os tumultos próprios da idade tantas vezes explorado em JRPGs, a realidade é que Trails of Cold Steel não é uma história sobre a guerra, ou sobre a coragem ou a amizade. Mas é, sim, uma história sobre classes sociais.
As lutas de classes na História Humana não são assunto de hoje. Ainda de que para a nossa cultura pós-moderna a definição e o conflito entre classes seja uma concepção marxista ou, de forma eliminatória, através de expressões anárquicas bakuninistas, este choque existe perfeitamente interligado com a estratificação da própria sociedade humana. Foi-o no Séc. V a.C. durante o Conflito de Ordens entre Patrícios e Plebeus, em que estes procuravam um destaque político igualitário na formação da República Romana. Ou as tão mediáticas Guerras Servis, trazidas até à memória colectiva recente através da tão-explorada história de Espártaco, e a forma como tentou defender os direitos dos escravos Romanos. Mas mais próximo da tensão que se vive em Trails of Cold Steel será mesmo a Revolução Francesa, a época em que a aristocracia (e a monarquia) foram suplantados por ideais republicanos e que puseram cobro ao feu dalismo que ainda se vivia na França do Séc. XVIII.
A academia onde decorre Trails of Cold Steel é socialmente estratificada. Historicamente a escola sempre possuiu sete turmas, sendo as primeiras unicamente reservadas para estudantes aristocráticos, que se demarcam dos restantes pelo seu uniforme branco. As restantes turmas (todas numeradas com algarismos romanos) vestem verde e são unicamente constituídas porm plebeus. O início da nossa história decorre no início do ano lectivo, e com o nosso protagonista e os restantes oito colegas de uma turma nova, a VIII, distinguidas das restantes por terem um casaco vermelho. Pouco nos é indicado sobre o porquê da criação desta oitava turma, mas cedo percebemos que aqui existe uma experiência social política. É que esta Turma VIII, para além de ser o centro de toda a narrativa, tem a particularidade de não distinguir os seus alunos pela classe social de onde provêm.
É claro que esta mistura social dentro de um ambiente socialmente separatista acaba por criar conflitos imediatos. Quando um a um os nove alunos que compõem a Turma VIII vão-se apresentando, a origem de cada um é rapidamente desvendada. O que é a génese de uma gigantesca tensão política entre o estereotipado jovem espadachim nobre, filho de um Senhor feudal, e um jovem plebeu de ideologias republicanas e obviamente anti-aristocrático, e que defende o mérito e o trabalho versus a oligarquia instituída de receber o poder por vias de herança. E esta postura tão demarcada deve-se ao facto de que o seu pai fez história no reino: é o primeiro “governador” de origem plebeia, e que alcançou esse posto pelo reconhecimento que lhe é feito do seu trabalho e do seu mérito.
Curiosamente, a capacidade de evasão do “nosso” protagonista em não revelar as suas origens parece ser o ponto médio de equilíbrio para a experiência social e política que é esta Turma VIII. O que, associada a todas as mecânicas de relações inter-pessoais (e respectivos bónus de combate) permitem-nos nesta escala mais visual novel do jogo de definirmos ideologicamente o personagem. Mediante a proximidade que vamos tendo com alguns personagens, e se acabamos por corroborar o distanciamento e isolamento do rapaz aristocrata, com óbvias chamas de superioridade em relação aos outros, ou se alinhamos politicamente com uma facção ideologicamente opositora do regime instalado. Tendo em conta o mistério em torno do protagonista, e sem revelar a progressão do enredo, poderá mostrar-se um gigantesco twist as escolhas que fazemos ao conhceremos a sua verdadeira origem.
The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel é filho do labor da Nihon Falcom, a histórica companhia de videojogos japonesa que habituou o seu público-alvo a brilhantes séries e jogos, mas que parece não ter o mesmo destaque fora do Japão. Conseguir aliar um subtexto tão forte, tão denso, com uma aura comercialmente apelativa, e que à superfície consegue agarrar um nicho específico com uma série de estereótipos, e fazer esta união resultar num bom jogo, não é tarefa fácil. Mas Trails of Cold Steel demonstra que o ano de 2016 começou bem para o enorme catálogo nipónico que nos vai chegar ao Ocidente.