Comer a Canja Toda é uma série de artigos sobre jogos obrigatórios desde o passado remoto ao passado recente. Jogos sobre os quais já pouco se escreve mas que não devem cair no esquecimento.
Comer a Canja Toda #1: F.E.A.R. (2005)
O que acontece quando o nosso propósito inicial é criar um jogo de acção que transmita ao jogador a emoção da sequência da casa de chá em Hard Boiled de John Woo? O resultado é F.E.A.R., mas isto é só parte da inspiração. O todo é maior que a soma das partes, e aqui as partes escolhidas foram as ideais, naquele que é ainda hoje um dos melhores Survival Horror FPS de toda a história dos videojogos.
Apenas mais um passo num trajecto de inovação no reino dos FPS, F.E.A.R. foi criado pelo estúdio Monolith Production e por uma equipa liderada por Craig Hubbard que já vinha inovando o género sempre que deitava as mãos a um jogo. Blood já tinha experimentado com novos caminhos (principalmente ao nível das armas do jogo e de todas terem um disparo secundário), Shogo tentou balancear FPS e Mechs, mas foi com a série No One Lives Forever que a equipa levou os FPS a uma estética nunca antes tentada, a do glamour dos filmes de espiões dos anos 60, com uma personagem feminina como heroína de um FPS e um guião recheado de bom humor. F.E.A.R. e F.E.A.R. 2 foram dois passos de gigante neste percurso que acabou por conduzir aos menos bem sucedidos Gotham City Impostors e ao recente Betrayer (já com a equipa noutro estúdio, agora indie) mas que mesmo com mixed fellings por parte dos jogadores tentaram enveredar por caminhos de jogabilidade original no género.
Parte-se então de uma sequência de acção e de um estilo cinematográfico de combate para a criação do jogo. A equipa concentrou todas as atenções no combate com armas e conseguiu atingir progressos que acabaram por definir o que tornou o jogo revolucionário.
Inimigos inteligentes que nos colocam na acção
Um conjunto variado de pesquisas por parte de vários investigadores, incluindo o Media Lab do M.I.T. conduziu ao desenvolvimento da arquitectura GOAP (Goal-Oriented Action Planning). Entre esse grupo incluía-se Jeff Orkin, Senior Engineer na Monolith e responsável pela implementação dos sistemas de inteligência artificial em No One Lives Forever 2 e, claro está, em F.E.A.R.
A abordagem GOAP é ainda hoje uma daquelas que produz comportamentos mais realistas de inimigos num FPS ou Third Person, sendo a estratégia implementada em jogos como S.T.A.L.K.E.R., Fallout 3, ou Deus Ex: Human Revolution, entre outros. A arquitectura GOAP é no entanto um pau de dois bicos, uma vez que o comportamento realista na forma como os objectos se comportam em grupo pode também conduzir a comportamentos demasiado imprevisíveis e caóticos. Mas a vida não é programada e, quando implementada no ambiente correcto, a GOAP é parecida com a vida.
Nos tempos mais recentes reina nos FPS (em termos de campanha de um jogador ou cooperativa) a táctica do Gordo em equipa que tem um gajo que gosta de jogar à baliza. Ora, todos sabem que o Gordo é quem vai à baliza. Porém, e quando há alguém que gosta de ir à baliza? O Gordo fica então à defesa à espera que venham com a bola e só tem um trabalho: tentar tirar a bola e depois passar a alguém. Nos FPS dos últimos anos podemos ser o Gordo. Quando a acção se complica basta correr para trás e ficar cá de longe a dar tiros, à espera de inimigos tão inteligentes como as moscas que nos cafés de aldeia olham para a luz azul e pensam: olha que m**** tão mais bonita do que as outras.
Ser o Gordo não é opção em F.E.A.R. Os inimigos procuram-nos e cercam-nos, atiram e viram objectos para usarem como cobertura, rastejam por baixo de secções ou saltam vedações. Observar os pontos que representam os inimigos no nosso radar é um deleite para quem gostar de Sociologia. Não se pense no entanto que isto serve apenas para nos perseguir. É que por vezes o próprio inimigo torna-se o Gordo. Quando as coisas se complicam para o lado dos inimigos, ou seja, quando nos dá uma de John Matrix (Commando para os amigos) é vê-los fugir e até saltarem por janelas para evitarem as balas.
A sublinhar de forma sublime todo este comportamento “inteligente” está o radio chatter. Em F.E.A.R. nós somos um anónimo agente de uma força de combate ao paranormal. Um género de Ghostbusters mas em versão S.W.A.T. com esteróides e capacidades supra-humanas que é chamado a intervir quando o espectro de uma bela e doce criança demoníaca decide dar uma de Regan MacNeil nas instalações de segurança onde está supostamente controlada. O intercom da nossa personagem apanha as comunicações de todos os rádios e é aqui que foi desenhado um guião perfeito de diálogos que nos indica o que o inimigo pretende fazer: das comunicações de estratégia de abordagem à nossa aniquilação, até ao facto de partilharem uns com os outros que estão prestes a borrarem a cueca. Todos estes sistemas somados fazem-nos sentir que os inimigos são pessoas de carne e osso.
Bang Bang, My Baby Shot Me Down
Uma inteligência artificial de topo, comunicações realistas entre os inimigos, e juntando a isto um sistema de combate que nos apetece gritar Yippe ki-ya! a cada execução bem sucedida, resulta na tempestade perfeita mas em bom. Uma das habilidades do jogo e aquela que mais usamos é a capacidade de colocar o combate em câmara lenta. Para amplificar este efeito (e a partir da inspiração de Hard Boiled que já referi no inicio) tudo está graficamente optimizado para o combate a esta velocidade.
As balas deixam ondas de impacto pelo ar; saltam pedaços de pedra, cimento, madeira, cartão, papel e outros materiais dos objectos atingidos; chuvas de partículas que vão desde faíscas a vidro a estilhaçar, em suma, um bailado de caos em câmara lenta cuja física dos inimigos ainda vem potenciar mais. Experimentem ver o sangue a saltar em câmara lenta dos seus corpos enquanto vão sendo ritmicamente atingidos por balas de metralhadora, até à Penetrator, uma arma que prega literalmente os inimigos à parede.
Don’t you go Poltergeist on me, Bitch
Craig Hubbard confessa que o setting e a história só vieram depois. F.E.A.R. podia muito bem ter sido um Call of Duty, um Homefront ou até um Rainbow Six da vida, mas felizmente as influências cinematográficas de Craig levaram-no a criar um ambiente de terror. Influenciado pelo filme japonês Ju-on de Takashi Shimizu que criou um novo tipo de terror cinematográfico, a equipa de F.E.A.R. resolveu implementar uma personagem muito similar, introduzindo Alma, uma entidade aterradora de rosto pouco definido que, embora tenha a forma de uma criança, ensina-nos a ir descontrolando progressivamente os movimentos dos nossos intestinos e bexiga.
Cruzando as estratégias de terror usadas em Ju-on e no primeiro Alien, e juntado umas pitadas da ameaça apocalíptica de Akira, F.E.A.R. aterroriza-nos porque nada é in your face. Não há aqui jump scares ou comboio fantasma. Neste jogo o terror aparece sempre de forma simples e quase sempre acompanhado por um silêncio gritante. A Alma não precisa de nos fazer nada directamente para nos mostrar quem manda e é um óptimo contraponto para os momentos em que nos sentimos John Rambo. Entrar numa sala que foi decorada com os vários pedaços dos corpos de uma equipa SWAT; ter os mosaicos a saltarem das paredes e tudo o que é eléctrico a entrar em frenesim; ver a silhueta de Alma a passar ao longe; ou até assustarmos-nos com a nossa sombra ao cruzar um canto; tudo está cuidadosamente orquestrado pela equipa do desenho de níveis ao desenho de som para nos deixar com os nervos em franja. Numa entrevista ao Rock, Paper, Shotgun elementos da equipa confessavam que chamavam outros elementos para jogarem certas sequências e vê-los saltar da cadeira. Depois esses faziam questão de ficar para verem os próximos saltarem também.
Wrap-up
F.E.A.R. é obrigatório porque é um dos melhores FPS da história dos videojogos. Um jogo que ainda hoje deveria estar a influenciar shooters modernos que muitas vezes parecem um retrocesso ao que foi aqui feito há uma década atrás. Com uma inteligência artificial que continua a surpreender e com um dos ambientes de horror mais bem trabalhos, F.E.A.R. é daqueles que vai envelhecer sempre bem.
Hunter Thompson escreveu que “… a paranoia é algo que não existe. Os nossos piores medos podem tornar-se realidade a qualquer momento”. F.E.A.R. é um desses momentos.