Confiar na web para encontrar o significado de expressões ou qualquer outra matéria informativa pode revelar-se tanto elucidativo como enganoso. Encontrar a verdade na rede é um caminho labiríntico feito de mais incertezas do que de ausência de dúvidas – basta constatar que existe o Rubber Chicken a discorrer sobre jogos. Tudo deve ser lido com uma pitada de sal mas as explicações da origem da expressão perder o fio à meada se forem correctas aplicam-se perfeitamente a Unravel.
Segundo dicionários informais e blogues minimamente credíveis, perder o fio à meada provém da expressão inglesa lose the thread. Embora thread possa apenas representar um único fio, meada, embora mais entendida como novelo é palavra mais correcta para representar o rolo de fio das grandes máquinas de tear da Revolução Industrial. Nas fábricas de tecido industrializadas e mecanizadas do início do séc. XX, existiam operárias e operários que seguravam o fio de lã, que atravessava uma ranhura e que conduzia à meada, garantindo que o fio se enrolava sem se embaraçar. Por vezes, por cansaço ou distração, o operário largava o fio e tinha de parar a máquina e a produção para o reintroduzir. Daí que perder o fio à meada passou a designar várias perdas, principalmente a perda de concentração, raciocínio ou foco. Meada aparece até no dicionário como mexerico, quem sabe das remotas conversas na fábrica que conduziam à distracção.
Se esta é a origem correcta da expressão, o título desta análise está perfeito. Unravel é um jogo que ao longo do caminho vai perdendo várias vezes o fio à meada.
A ideia de Unravel é minimamente original. Embora possam estar no jogo muitas ideias de mecânica do fantástico Kirby’s Epic Yarn o todo é uma execução diferente. Unravel é também um jogo de plataformas – já lá vamos à componente de puzzle – cujo protagonista, Yarny, também é feito de lã. Mas as semelhanças terminam aqui porque no jogo do estúdio Coldwood Interactive, Yarny não é apenas um boneco de lã mas sim um boneco feito de lã. Podemos até afirmar que Yarny é um novelo enrolado na forma de um boneco e, como tal, assim como pode enrolar-se para ganhar uma forma antropomórfica também pode desenrolar-se e perder o fio que o torna em algo.
É aqui que reside a principal mecânica de Unravel para dificultar a progressão do jogador: Yarny vai desenrolando-se ao longo do caminho e precisa de recolher mais fio de tempos em tempos, caso contrário ficará preso no mesmo local, o fio de lã completamente esticado, a progressão presa literalmente por um fio. Para conseguir progredir ou aceder aos locais onde podemos encontrar mais lã podemos atirar fio para agarrar secções, trepar o fio até onde o agarrarmos, prender e puxar objectos com o fio, atar o fio entre duas secções para servir de trampolim ou até atar o fio a uma estrutura para que possamos balançar nela como liana e aceder a áreas mais distantes.
Pela descrição anterior, das mecânicas de jogo, parece que estamos perante um fantástico e refrescante jogo. Porém, infelizmente, como referimos na introdução, Unravel vai perdendo constantemente o fio à meada. Um bom jogo de plataformas com puzzles – e assim chegámos à componente problemática dos puzzles – introduz progressivamente possibilidade mecânicas e aos poucos vai misturando-as numa maior complexidade e desafio de resolução. No entanto, o primeiro terço de Unravel é simplesmente aborrecido, que aqui nem vale a pena procurar explicação mais técnica ou criativa. Aborrecido é a palavra certa. Juntemos-lhe talvez banal. Como exemplo, fiquei dois a três minutos preso numa secção a tentar ultrapassar a mesma quando afinal apenas tinha que me deslocar para a direita e saltar. Num bom jogo, não poderia ser tão óbvio; como se poderiam desperdiçar todos os elementos no cenário com os quais se podia interagir para a resolução de uma área? Mas isto acontece constantemente ao longo do jogo. Os restantes dois terços de Unravel possuem um conjunto – limitado – de boas ideias mas quase sempre o jogo não é aproveitado e os elementos no cenário parecem ter sido abandonados algures durante o desenvolvimento: tornados fantasmas de mecânicas e possibilidades que nunca o foram. Na verdade, sente-se constantemente que Unravel podia ser um jogo muito melhor, até pelos objectos presentes. É como se tivesse sido apressado, abandonado em certas secções, posto de lado ideias de jogo esquecidas. É como se, lá está, tivesse perdido o fio à meada (prometo só usar a expressão mais uma vez).
Irrepreensível é o cenário de jogo e os seus ambientes. O jogo foi desenvolvido com recurso ao PhyreEngine da Sony embora ao longo do jogo eu pudesse jurar que o estúdio – aqui patrocinado pela Electronic Arts – tivesse utilizado o Frostbite 3, tal a beleza gráfica de Unravel. Graficamente, o jogo lembra-nos o maravilhoso documentário Microcosmos de Claude Nuridsany e Marie Pérennou que filma o ínfimo mundo dos insectos como se fosse à escala do nosso e apresentando-nos uma realidade que está por baixo dos nossos pés mas nunca é imaginada pelas nossas cabeças. O mundo de Yarny, em primeiro plano, mostra-nos o pequeno como se fosse a nossa realidade e, num fantástico e desfocado segundo plano, movimenta-se o nosso mundo, aqui habitado por “gigantes” como alces, corvos, comboios ou veados. Unravel é um dos jogos mais belos dos últimos anos na execução gráfica e direcção artística.
O resultado final é um jogo mal aproveitado, que várias vezes recua nas ideias e mecânicas já apresentadas, quando deveria avançar, polvilhado com momentos, pormenores e secções inesquecíveis que infelizmente são demasiado escassas. A metáfora do fio que se desenrola e das memórias que vão sendo visitadas é também quase sempre forçada e remete-nos para a ideia que o jogo está a ser forçado a caber dentro da história, em vez do natural inverso. O mais frustrante em Unravel é conseguirmos visualizar um jogo genial ao longo dos seus capítulos que nunca chega a estar presente.
Relacionar o valor intrínseco de um jogo com o seu valor monetário é exercício do qual não sou adepto. Porém, aqui, uma anedota pessoal impõe-se. Quando o jogo apareceu na loja a cerca de 20 euros causou-me surpresa por ver a EA a vender um jogo a um preço tão baixo. Curiosamente, acredito que se o jogo não fosse da EA estaria a cerca de 10 euros. A EA não muda assim. Mais uma vez, é ingrato atribuir um valor em numerário a um jogo, mas sirva esta anedota para mostrar que Unravel, como jogo, vale menos de metade do que poderia ser. Tivessem o foco e a concentração sido os correctos e tínhamos a meada perfeita para enrolar ao longo do jogo. Assim acabamos por ter apenas interesse passageiro, ao que se seguirá o abandono e o mexerico de quem, antes de mudar para o próximo título na prateleira, foi perdendo o fio à meada.
Esta análise de Unravel foi feita a partir de um código de jogo para PS4 enviado pela Electronic Arts ao Rubber Chicken.