Todos temos podres. Todos temos segredos e momentos de vergonha. Todos escondemos certos momentos das nossas vidas, particularidades, traços de personalidade, tiques e obsessões. Ninguém pode clamar vitória sobre estas eventualidades do – e de – ser humano. Podemos ludibriar, esconder, camuflar; até ultrapassar; mas nunca contornar e evitar. Mais cedo ou mais tarde, todos temos podres.

Shame

Podia aqui escorrer uma lista pessoal das minhas inevitabilidades anímicas mas vou apenas cingir-me a um limitado conjunto de embaraços. Para ser mais exacto posso até reduzir a lista à fidelidade de um número: Três. Nos videojogos, três momentos causaram-me perplexidade por ter-me deixado enredar numa malha de vergonha. Aqui me exponho então a vós, pela minha voz, sincero e despido.

Momento nº 1

Sobre a primeira entrada no quadro da vergonha, perdoem-me a hesitação após ter acabado de ter prometido a exposição pública, mas sobre este momento não me vou abalançar ao achincalhamento. Apenas posso adiantar que se trata do Second Life e da compra de um pack com órgãos genitais e pelos púbicos para um avatar. Nem sequer podemos afirmar que se trata de um jogo per se  – e aqui está o latim a tentar dar a volta ao leitor e afasta-lo do WTF que se lhe começou a formar na cabeça no parágrafo anterior – portanto ficamos por aqui. Ab auditione maia non timebit.

wtf

Momento nº 2

O local foi Amadora ou, com precisão geográfica, Alfragide ou, com precisão bairrista, da parte de baixo hem!, não é lá para cima na parte dos ricos! As datas foram 2003 e 2004. O jogo: Runescape. Um momento tão inofensivo como o seguimento de um link, a criação de uma conta, os primeiros passos e, de repente, como num acidente de viação, a vida muda. Se fosse um qualquer anúncio publicitário entre novelas teria um narrador de voz grossa em tom preocupado e triste, um violoncelo a chorar, e em câmara lenta eu a escolher o machado do inventário e a clicar pela primeira vez numa árvore. Depois ouve-se um som de vidro e metal a partir e vai tudo a negro. Não, não foi a negro.

O que aconteceu foi que continuei a clicar milhões de vezes para obter madeira e minério, para fabricar peças de armadura, para aniquilar vacas, galinha, ratos e fugir do eventual dragão, para desenvolver a minha agilidade em pistas de obstáculos que faziam lembrar a educação física do preparatório, para criar arcos e setas.

deskmess

Os piores momentos surgiam quando se ouvia o cantar dos pássaros – ou os tiros para o ar no bairro social – e a luz dourada e forte da manhã rompia pela janela ao meu lado. Olhava para o meu cinzeiro onde repousavam de forma nojenta as sobras de dois maços de tabaco, para latas deitadas na secretária e ocasionalmente no chão, para as muitas migalhas de cookies com pepitas de chocolate a criarem no tampo a constelação da badalhoca. Depois olhava para o monitor onde um número 80 acabava de passar para 81, depois de 10 horas seguidas de pesca virtual. O coração apertava pelos livros, pelos filmes, pelos passeios, pelos amigos, pelo sol da praia, pela ondas que a prancha não tocava, pelas revistas e jornais. Pela vida não vivida e que se perdia todos os dias numa obsessão que se tornara um vicio nada saudável e de dia para dia cada vez menos satisfatório. A cura acabaria por vir, numa semana de clareza em que abandonei o jogo para nunca mais regressar mas, esses dois anos, vão sempre manter-se na memória apenas como momentos desfocados.

Momento nº 3

O mais recente de todos. Espalhado na alternação entre períodos de compulsividade constante e períodos de quietação. Clickers. Ou, no caso de um tablet: Tappers. O acto de clicar constantemente para evoluir num jogo que sabemos ser infinito – daí desprovido de objectivo final, logo também de sentido – constitui um dos momentos mais incómodos da minha vida de jogador por serem simplesmente absurdos e ilógicos. É que após a primeira hora de jogo já não se joga por prazer, porém continua-se a fazê-lo por semanas.

O mais deprimente é quando, como no caso de Clicker Heroes, depois de se já ter aprendido a evitar o jogo após semanas no PC, voltar a instalar o jogo em versão iOS e voltar a ficar semanas a obcecar até que os dedos ficarem com contrações involuntárias e dolorosas.

O mercado chama a estes jogos idle games, o que pode ser traduzido por jogos inactivos. A ironia…

irony

Conclusão após os três momentos e uma notícia recente preocupante

A Jagex noticiou esta semana que para celebrar os 15 anos de Runescape vai, em parceria com o estúdio Hyper Hippo, desenvolver Runescape: Idle Adventures para lançar a meio deste ano. A Hyper Hyppo é a responsável pelo jogo AdVenture Capitalist um dos idle games mais viciantes dos tempos recentes. Ou seja, o meu Momento nº 2 e o meu Momento nº 3 vão juntar-se num só jogo, misturando pesca, agricultura, combate e muitos outros skills com clicking e leveling infinito. Conclusão: mesmo sem um pénis à mistura, chegou o momento perfeito para desistir dos videojogos.

runforyourlife