Nota: este artigo não é uma análise pela simples razão que decidi que não iria esperar para terminar o jogo para escrever este artigo. A imersão que tenho tido com Digimon Story Cyber Sleuth tem sido tão grande (pelas razões que verão ao longo do artigo) que decidi que só vou terminar quando tiver atingido o completude do jogo e todas as criaturas “capturadas” e todas as quests paralelas terminadas.

Digimon Story Cyber Sleuth (1)

Falar de maturidade e de Digimon na mesma frase poderia ser em tempos um tremendo contra-senso. Sempre senti desde os primeiros anos de Digimon e o seu “rival” Pokémon, a série que tentou de forma infrutífera rivalizar, que existia uma proporcionalidade indirecta entre as séries de animação que serviam de porta de entrada a gerações de miúdos (e graúdos) e os videojogos que os acompanhavam. Se a série de anime de Pokémon sempre teve um formato excessivamente infantil paras conseguir ser apelativo a outras demografias, os seus jogos, por sua vez, foram o melhor gateway de JRPGs para muitas e variadas gerações. Digimon sempre deu cartas no seu formato televisivo. Com um setting que lhe permitia estar menos refém de uma fórmula muito rígida, as subsequentes séries e twists acabaram por torná-la apelativa até para os padrões da animação contemporânea. Os videojogos, por sua vez, eram terríveis.

Comprei Digimon World numa fase em que já preparava a minha entrada na Faculdade. Sabia que a minha demografia não correspondia ao público-alvo nem das séries de Digimon nem de Pokémon, o que não me impedia de seguir os jogos da Nintendo e o anime de Digimon. Havia aqui (e acho que sempre existiu) uma proporcionalidade inversa entre estas duas séries e as duas manifestações. Onde Digimon era melhor, Pokémon era claramente inferior e vice-versa). Ainda assim Digimon World foi comprado quase em dia 1, aproveitando o ímpeto que tinha com a série de anime e os concepts (que ainda hoje adoro) das criaturas que lá habitam. E acho que até hoje DW é o um dos mais jogos que eu mais me arrependi de jogar e que continuo sem perceber o caminho que os developers tinham estipulado para si. Eu sei que a génese de Digimon anda em torno de criar tamagotchis mais masculinos, mas fazer do jogo um boneco destes glorificado em videojogo foi um tremendo erro.

Digimon Story Cyber Sleuth (2)

Dizer que este Digimon Story Cyber Sleuth é o melhor jogo de Digimon é dizer muito, e ao mesmo tempo, não é. Admito que à excepção do Digimon Trading Card para PS1 (onde dediquei dezenas de horas) e os Story (do qual este jogo é sequela), nenhum jogo conseguiu sequer chegar perto dos calcanhares do Pokémon menos bom. Que dentro de toda a simplicidade que mantém em constância nestes 20 anos produz videojogos mais sólidos do que qualquer Digimon.

É curioso ver que as duas séries rivais conseguem manter-me próximo tantos anos depois. Pokémon manteve o seu tom relativamente inalterado, ainda que o seu publico original tenha crescido, apelando a novas gerações pela inalteração da sua abordagem. Digimon por sua vez foi crescendo com os seus fãs, culminando com 2015, quando este Cyber Sleuth foi originalmente lançado no Japão, e que coincide com a maturação que a nova série de anime apresenta. Digimon decide reconquistar a sua base de fãs originais com uma maturação óbvia do seu tom generalizado.

Digimon Story Cyber Sleuth (3)

Cyber Sleuth decorre numa espécie de Tóquio real, onde os emblemáticos bairros da cidade japonesa são reproduzidos para permitir-nos uma maior imersão na suspensão da descrença. A grande diferença do nosso mundo real para esta Tóquio ficcional é que a Humanidade elevou as ligações sociais virtuais que agora fazemos para uma corporeidade digital em formato de avatar. Na EDEN, a rede digital onde os humanos se encontram com as syas duplicatas virtuais, a sociedade vive em paralelismo com a vida real. As redes sociais são tangíveis (ou tão tangíveis quanto um mundo virtual pode ser), os fóruns e demais ligações que hoje possuímos decorrem todos num plano diferente. E é no grande problema transversal a todo o jogo que cai a maturação óbvia de Cyber Sleuth: uma série de utilizadores da rede EDEN ficaram em estado vegetativo, sem quaisquer actividades cerebrais nos seus corpos físicos.

Sem incorrer por spoilers, o nosso protagonista acaba por ter um acidente e perder a sua existência física e virtual em simultâneo, ficando num espaço intermédio que lhe permite coexistir em ambos os planos em simultâneo. E é com essa potencialidade, e muito ao estilo de Megaman Battle Network (do qual há uma série de inspirações) que nos conseguimos conectar à rede e transferir a nossa consciência para lá.

Digimon Story Cyber Sleuth (4)

O enredo, bem mais maduro como demonstra o conflito principal de Cyber Sleuth, demonstra a inteligência da Bandai Namco em aproximar o tom aos jogadores mais velhos, mantendo alguns conceitos do setting (tal como as formas de vida digitais que dão pelo nome de Digimon), mas criando uma narrativa completamente isolada do anime, o que lhes dá uma maior margem de progressão para serem mais negros na temática.

Outra notória inteligência da Bandai Namco foi a de aproximar-se conceptualmente de alguns jogadores de JRPG mais “exigentes” ao aliar o tom mais adulto à contribuição de dois nomes pesados da indústria nipónica no jogo. A música, ao cargo de Masamufi Takada, compositor de DanganRonpa, killer 7 e No More Heroes, e o exímio character design sob a atenção de Suzuhito Yasuda, que entre outras obras produziu Shin Megami Tensei: Devil Survivor.

Digimon Story Cyber Sleuth é um JRPG simples, com jogabilidade que bebe muito da fórmula de Pokémon. E ainda bem, diria. A captura é feita através de Scans, ou seja, quantas mais vezes nos cruzamos, maior vai ser a percentagem de scanning, que ao chegar aos 100% (ou mais) nos permite fazer download de dado Digimon.

O sistema de digivolução (e de-digivolução) é igualmente simples, em que cada Digimon vai evoluindo de nível (no sistema JRPG típico), e tendo cumprido os requisitos estatísticos para passar à nova forma é-nos permitidos dar esse salto. O problema é que existindo 240 Digimon distintos a febre “Vou apanhá-los a todos!” caiu sobre mim de forma pesada.

O sistema de combate é igualmente semelhante ao de Pokémon com a usual grelha de forças e fraquezas, mas complexificadas. É que ao equilíbrio entre elementos diferentes temos também de adicionar outra variável: a do tipo de Digimon, se este é um vírus, informação ou vacina. E é nesta gestão simples do combate que recai alguma da piada, ainda que, sem sombra de dúvida, a dificuldade média das batalhas seja muito, muito simples.

Digimon Story Cyber Sleuth não é só o melhor jogo de Digimon. É o jogo de Digimon para que não gosta de Digimon. E é um excelente jogo, por si só.