Este renovado interesse do público e de muitos indie developers em torno das aventuras-gráficas faz-me papaguear uma série de introduções em torno da influência dos jogos clássicos e o quanto a minha geração (os trintões que são hoje game devs) estão a produzir homenagens aos seus ídolos. Desta vez não me alargo e deixo a introdução quase telegráfica: os developers do estúdio Mosaic Mask decerto cresceram a jogar os clássicos da LucasArts e decidiram criar um jogo no mesmo tom. E conseguiram? Sim, e não.
A premissa do jogo é curiosa, remetendo muito para o mito clássico da soberba de Ícaro. O nosso protagonista é Talorel, um estranho anjo que decidiu responder a uma teima e decidiu voar até aos limites do Paraíso. E numa espécie de justiça divina acabou por ter as suas asas queimadas e o seu halo perdido, enquanto caiu redondo na pequena aldeia de Heaven’s Hope, num período do final do Séc. XIX em que uma freira extremista controla os locais com mão-de-ferro sob a vontade (dita) Superior de reinstalar a Santa Inquisição.
É claro que este setting possui uma abertura automática para um punhado de referências obrigatórias a Monty Python. Ao contrário do que o tom mais sério de toda a trama político-religiosa possa antever, Heaven’s Hope impõe o tom de Secret of Monkey Island como pauta da sua narrativa. Tom esse que eu senti automaticamente, e ainda que reconheça que Heaven’s Hope não está perto da eterna qualidade das obras da LucasArts, permitiu-me um estranho déja vu, um mergulho estético e de ritmo narrativo que trouxeram à tona o entusiasmo de jogar as minhas aventuras-gráficas favoritas pela primeira vez.
Talorel não tem a qualidade de escrita e concepção de Guybrush ou Calavera e isso é um ponto assente. É curioso que depois de seis horas no jogo acabei por sentir que os melhores personagens do jogo são mesmo Salome e Azeal, os companheiros “espirituais” de Talorel que funcionam como consciências sempre presentes, e que são o deus ex machina dos developers para dar dicas aos jogadores quando estão presos em algum puzzle. Mas o tom quase transparente como Talorel foi criado contrasta com a esperteza e sarcasmo dos seus dois discípulos, que acabam por ajudar a construí-lo enquanto protagonista.
A queda de Talorel nada tem de romântico, é aliás o arranque para toda a divertida parvoíce expectável num jogo à-la-LucasArts. Desde o nosso fiel rato que ressuscitamos no início do jogo (depois de acidentalmente o matármos) e passando pelo nosso homúnculo, Anselm, Heaven’s Hope tem uma série de momentos de bom humor e de apurada criatividade para uma aventura-gráfica. Infelizmente, os bons puzzles contrastam com aqueles puzzles WTF? que muitas aventuras-gráficas incorrem. Seja o corredor em que temos de clicar em sítios específicos para passar (fi-lo sem saber bem como) e a cena de trip psicadélica que me levou ao melhor (dos piores) clicar e testar tudo para encontrar a solução. Agrada-me a loucura, mas sempre me irritaram os puzzles ilógicos e disconexos de muitas aventuras-gráficas, que pouco ou nenhum sentido faziam dentro do coopto geral do jogo.
Rebatendo os usuais (e detestáveis) pixel-hunts, os autores introduziram alguns mecanismos de auxílio aos jogadores. Para além das dicas dadas pelos 2 anjos, temos ainda a possibilidade de pressionar a tecla de espaço para destacar quais os elementos com o qual podemos interagir. Outra melhoria, e que já tinha visto no genial The Book of Unwritten Tales 2 é a possibilidade de duplo-clique, que aqui funciona como “teleporte” do personagem para essa localização, para evitarmos a monotonia das animações de movimentação das aventuras-gráficas. E apesar do jogo decorrer num cenário relativamente fechado, a introdução de um mapa para fast travels acaba por ser bem-recebido para evitar a frustração de calcorrear o jogo para a frente e para trás.
O voice-acting é de elevada categoria, assim como é o primor visual do jogo. Curiosamente a qualidade pintada à mão dos cenários, e as animações dos personagens estão no patamar que esperava que os remakes visuais de Monkey Island tivessem. Mas infelizmente sempre que regresso às versões de Steam dos clássicos de Schafer e Gilbert prefiro jogar nas execelentes versões originais do jogo.
Heaven’s Hope é uma óptima aventura-gráfica que tenta chegar perto da genialidade de Monkey Island. O facto de não ter conseguido alcançá-la não lhe retira qualidade, e acredito que deverá ser jogada por todos os fãs do género. O humor corrosivo sobre a condição humana e a religião são apenas valores acrescentados.
Nota: este artigo está perto da análise, mas não o é porque não terminei o jogo. É que um bug (daqueles que impedem a progressão do jogo) ocorreu aos 82% da conclusão. E para ser honesto não tenho qualquer vontade em rejogar do início.
Nota para o futuro: guardar várias saves em pontos diferentes.
https://www.youtube.com/watch?v=EMuKTnBysRE