Os primórdios da História da aviação são um caminho tortuoso recheado de insucesso, dor, ossos partidos e morte. Desistir não estava porém nos planos, pois voar seria sempre algo inevitável para o ser humano. A forma como evoluímos levou-nos constantemente a tentar o impossível, a desejar mais que o necessário e a possuir um enorme fascínio pelo desconhecido. Deve ter sido ainda nos tempos primitivos que um homem olhando para uma ave a voar pensou pela primeira vez que iria tentar fazer o mesmo.

Antes das primeiras tentativas – penso que homens e mulheres atirados de penhascos voluntária ou involuntariamente, distraidamente caídos, ou tentando evitar um mamute não devem contar para a estatística – as mulheres e os homens já nos imaginavam a voar e ilustravam-no com a única ferramenta e tecnologias à disposição: escrita e imaginação. Quando Bellerophon capturou o alado Pegasus; quando Icarus ignorou os conselhos do pai e tentou chegar ao sol; quando King Kaj Kaoos voou com águias agarradas ao trono. Enquanto ainda não conseguíamos colocar em prática as nossas tentativas de subir pelos céus, já o fazíamos nos sonhos e histórias.

FlightAtempt

I believe I can fly…

Até se chegar às 10h35, da quinta-feira de 17 de Dezembro de 1903, quando Orville e Wilbur Wright finalmente levantaram do chão com sucesso, uma inevitabilidade humana custou muita dor aos nossos ancestrais: os nossos músculos dos braços não têm a mesma força que os músculos dos “braços” das aves. Nem de perto. Daí que as tentativas de abanar asas gigantes com penas resultaram sempre no inevitável funeral. Era preciso adicionar potência e mais importante, não era necessário bater as asas. A configuração das mesmas e a forma como o ar passa por elas era a chave para o sucesso. Não era necessário observar as árvores a baterem as asas, mas sim a planar. Mas, com menos osso ou mais osso, com menos ou mais lágrimas e desgostos, lá chegámos com a contribuição do princípio de Bernoulli. Para uma boa explicação é favor jogar Thirty Flights of Loving até ao final:

ThirtyFlightsofLoving

Nos videojogos, o nosso fascínio pelo acto de voar materializou-se desde cedo em títulos. Desde os toscos e primitivos Chopper Command ou River Raid; passando por Pilotwings; balançado nas cabines arcade de After Burner; ou atravessando todas as centenas de simuladores de voo mais realistas – onde Flight Simulator foi quase sempre rei – a quantidade de jogos que nos permitem controlar aeronaves ou outros objectos voadores é infindável. No entanto, acima de todos, eleva-se um dos melhores equilíbrios da história entre um jogo de acção e um simulador de voo.

Sky Odyssey é um daqueles jogos que não estava na nossa lista de prioridades antes de surgir – ou que até nos passa ao lado quando é lançado para o mercado – mas que quando o começamos a jogar entranha-se em nós causando perplexidade e surpresa. Sky Odyssey, lançado para a PlayStation 2 em 2000, é até comparável a outro jogo que à partida em nada estaria relacionado: SSX. A comparação entre ambos deve-se às mecânicas de jogo extremamente afinadas que nos transmitem um feedback incrível entre a utilização dos comandos e o que acontece no ecrã, e a um balanço fantástico entre a física real e a jogabilidade mais arcade. Os dois jogos foram lançados como exclusivos PlayStation 2 com um mês de diferença mas, infelizmente, só o incrível jogo de ski se tornou um sucesso de massas, deixando o simulador de voo para um canto mais esquecido das prateleiras, atrás de outros jogos nas lojas físicas ou escondido nos confins das páginas finais de uma pesquisa na Amazon.

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O jogo foi definido como uma “Aventura Voadora” pela equipa liderada por Mitsunori Shoji que quis entregar aos jogadores a sensação e o sonho de criança de voar, não de uma forma complexa mas de uma forma mais livre e intuitiva. Tentando balancear o realismo da física de voo com uma abordagem mais irrealista, o estúdio Cross concentrou-se em afinar o jogo até o mesmo proporcionar o “imenso gozo de voar” – curiosamente algo muito similar do que a equipa de SSX também quis atingir entre um ski de física realista e movimentos impossíveis mas divertidos.

O rasto do criador do jogo perde-se na internet após a criação de Sky Odyssey mas no caso de outros elementos na equipa percebe-se como uma equipa de 40 pessoas criou uma obra-prima. O produtor continuou a estar ligado no futuro a projectos arriscados como Ico, Ka, Genji ou Jeanne d’Arc entre outros, que mostram a sua apetência em reconhecer a qualidade e a importância de certos jogos, mesmo que financeiramente sejam altamente incertos; a equipa de programação é até hoje a equipa dos Mario Party; e o mais famoso actualmente de todos os elementos é Kow Otani, que após compor a maravilhosa e épica banda sonora de Sky Odyssey continuou a espalhar a sua genialidade nas notas de vários animes, assim como na sua obra maior: a banda sonora de Shadow of the Colossus.

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O jogo foi promovido no lançamento como um Indiana Jones dos aviões e as semelhanças com o herói criado por George Lucas são notórias, com um enredo que se desenrola num conjunto de ilhas misteriosas recheadas de templos, lendas, artefactos e missões que são autênticas sequências de acção: voar no meio de desfiladeiros onde as paredes de pedra estão a ceder; tentar manter o avião estável no meio de furacões; descobrir e aterrar num templo escondido no interior de uma floresta; ou abastecer a partir de um comboio em movimento.

Estas missões são acompanhadas por um sistema de condições meteorológicas que alternam desde o céu a brilhar até a ventos ciclónicos no nevoeiro da noite, e que afectam o comportamento do nosso avião e podem tornar o acto de voar com um avião algo tão impossível como sem avião saltando de um prédio e abanando os braços rapidamente. Voar com vento forte coloca-nos os nervos em franja enquanto tentamos dominar e controlar as várias aeronaves mas quando finalmente conseguimos aterrar em segurança no final do nível, a sensação de vitória é incrível. Cada missão pode ser pontuada com uma nota que vai de D até A+ e que é muitas vezes necessária para progredir no modo de história. Curiosamente não é necessário terminar missões com notas altas para nos sentirmos realizados uma vez que, como já referi, só pilotar e voar em Sky Odyssey já é em si recompensa suficiente.

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Aprender a voar em Sky Odyssey é fácil, mas dominar Sky Odyssey é hardcore. Ao longo do jogo, enquanto desbloqueamos aviões – ou peças para melhorar a performance dos que já possuímos – vamos sendo confrontados com uma dificuldade cada vez mais crescente e para a qual não existem atalhos. Não existem modos fáceis, não existe perdão para os erros nas secções mais avançadas. Mesmo quando desbloqueamos um avião mais potente que nos permite ultrapassar mais facilmente uma determinada área, voltamos a necessitar da nossa fiel avioneta mais à frente para conseguir navegar em secções nas quais o novo avião mais poderoso nem sequer cabe devido às suas dimensões mais avantajadas. Também um upgrade ao nosso avião pode ajudar numa determinada missão mas ter que ser retirado noutra. Não existe linearidade ou facilidade na evolução da dificuldade em Sky Odyssey. Existe imprevisibilidade, o que proporciona variedade e surpresa. Certas secções requerem muita repetição da nossa parte até serem ultrapassadas e, mesmo quando já dominamos o jogo, continuamos a precisar de uma pitada de sorte aqui e ali.

A pior faceta de Sky Odyssey é a gráfica. Infelizmente o jogo está muito pouco optimizado quando comparado com outros jogos da mesma época e sofre de uma enorme falta de definição, de uma quantidade de aliasing que faz doer os olhos, de um desenho de horizonte que está sempre a lembrar-nos que isto é um jogo e de texturas simplificadas e pouco detalhadas. O facto de mesmo assim ser um dos jogos mais viciante de sempre só mostra que a qualidade da jogabilidade e das mecânicas de voo é de tal forma superior que se sobrepõe aos enormes problemas gráficos.

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Sky Odyssey é obrigatório porque é uma das pérolas escondidas da aviação digital, um jogo que balança de forma perfeita o realismo da simulação com o irrealismo de um jogo de acção, e talvez o jogo que em que toda a história dos videojogos mais nos proporciona o gozo de voar. Com vários aviões para desbloquear, de um biplano a um caça de guerra passando por um OVNI, cada um com um comportamento diferente perante os efeitos meteorológicos e os diferentes cenários de jogo que podem ir de desfiladeiros a grutas e até a templos escondidos, Sky Odyssey proporciona uma aventura nos céus que é fácil de agarrar mas muito difícil de dominar. Hoje em dia quando nos sentamos um avião não pensamos, não nos lembramos ou nem sequer sabemos a história que tornou possível o acto de viajar por cima das nuvens. O passado é esquecido e torna-se irrelevante para aquele momento. Sky Odyssey também foi esquecido, mas se quiserem saber qual é a sensação de voar num dos melhores jogos do catálogo da PS2, está na altura de procurarem bilhete num qualquer vendedor no eBay. O meu, esse está bem guardado. Não vá voar.