A Ubisoft já é há algum tempo questionada pelas suas práticas e algumas decisões de negócio, por um lado porque é um target demasiado grande para se ficar indiferente, por outro lado porque exerceu durante muito tempo uma contínua reciclagem e com alguns jogos considerados inacabados, principalmente na série Assassin’s Creed. Eu, inclusive, tomei como base esta última prática, convenci-me da prática do “milking”, e fui bastante crítico usando esse termo para Assassin’s Creed Chronicles. Parti desse ponto para Far Cry: Primal com esta ideia pré-estabelecida, mais demarcada pelo facto que o anúncio entre este e o lançamento do seu antecessor Far Cry 4 ter sido feito num curto espaço de tempo.

E o que fez a Ubisoft? Curiosamente entregou neste curto espaço de tempo uma experiência de jogo muito melhor que a anterior. Sabíamos que, à partida, os assets seriam reutilizados e sabíamos que a reutilização teria como base o Far Cry 4, que por sua vez teve como base o Far Cry 3, que derivou da sandbox dinâmica do 2. Mas não é esta prática de reutilização o mesmo que acontece com muitos jogos AAA? Basta olhar para FIFA, PES ou Call of DutyFala-se que o mapa de Primal é o mesmo do seu antecessor nos Himalaias. A Ubisoft Montreal aproveitou o esqueleto do mapa de Far Cry 4 e revestiu o mesmo com um novo look, um novo ambiente claramente situado há 12.000 anos atrás, com tribos de nómadas, caça de várias espécies de animais, elementos exóticos, templos arcaicos e muitas cavernas rochosas. A base é a mesma, o conceito é (não totalmente) diferente.

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Quando refiro que a base é a mesma, é maioritariamente pela organização do mapa e algumas mecânicas. Não faltam os vários pontos de interesse para descobrir, as bases para conquistar que permitem fast travel, o sistema de trepar, os coleccionáveis, sistema de crafting, as montadas com os antepassados dos elefantes e a caça de animais que perduraram ao longo de tantos anos e conseguiram sobreviver à investida do Homem sobre a natureza. Outros não. Mas por mais que todos estes elementos (ou se lhes quiserem chamar assets) foram novamente usados para o rápido desenvolvimento de Primal, não há uma sensação de repetição.

Contudo, a reutilização do esqueleto do mapa foi o suficiente para meio mundo atirar-se de pés juntos às pernas da Ubisoft, há quem diga ter “pena” de quem comprou o jogo, e há ainda quem tenha, sem ter jogado como os que dizem ter “pena”, uma posição de desconfiança relativamente ao preço vs. conteúdo. Em relação à última posso sugerir que esperem por uma baixa de preço. Porque se a Ubisoft poupou no desenvolvimento, quem compra deve ter o direito de poupar na carteira. Para os restantes convém saber que este é um dos melhores jogos do momento.

Se formos a comparar o mapa de Far Cry 4 com o de Far Cry: Primal é como fazer comparações com o logo da LG e dizer que é o esqueleto do Pacman. Não há limites para comparações. Basta ouvir o John Oliver a comparar os dedos do Donald Trump com mini-salsichas de cocktail. Não que esta seja uma comparação descabida, porque imaginem o Rex a tentar fazer a cama, é como o Trump a tentar pegar numa pedra com as próprias mãos para construir o muro que pretende dividir os Estados Unidos do México. Uma das muitas razões porque pode demorar mais que a construção da grande muralha da China. Ou já imaginaram Trump na idade da pedra com duas pedras do tamanho de berlindes? Coitado, nunca daria faísca.

Far Cry Primal Village

O Mesolítico foi uma época de desenvolvimento de pequenas sociedades que se juntavam para a caça, domesticavam animais e plantas, e incrementaram a agricultura sedentária. Foram estas pequenas sociedades primitivas que posteriormente evoluíram para as civilizações, mas essa é outra história que ficará por contar… Far Cry: Primal representa o início da evolução, o que pessoalmente espero que seja a base para o futuro da série e que aproveite bem a corrente para nos dar algo mais que outro shooter com bazucas e C4 nas mãos. 

Far Cry: Primal veio a revelar-se naquilo que Far Cry 4 deveria ser desde o início. Não se atrapalhou a misturar settings, não insistiu no modo cooperativo semi-vazio, desligou-se das armas de fogo e concentrou-se no ambiente furtivo com a força de um caçador primata, munido de armas construídas a partir de madeiras, pedras e ossos. Armas essas que se podem melhorar na procura de recursos que a natureza concede, e das quais se limitam maioritariamente ao arco e flecha, lança e tacape.

A morte de um animal é feita por necessidade e não por desporto, mas tudo dependerá da nossa relação com este ecossistema. E não há arte na caça furtiva com uma AK7 (ao contrário do que pensa o dentista Walter Palmer), chega a desrespeitar a vida animal, e Primal sustenta a ligação do homem com a natureza. Primal fez-me imaginar o respirar do ar puro e fez-me pensar na destruição que o Homem moderno causou ao planeta, e sem o referir directamente, apenas a situar-me na vegetação e locais paradisíacos, ao acompanhar as manadas de mamutes e ao colocar-me no topo do grande vale de Oros, onde a noite é muito mais perigosa que o dia, a olhar para a densidade verdejante.

Far Cry Primal riding_sabertooth

Far Cry: Primal aproveita a qualidade variada de companheiros da fauna que se podem domar para montar, defender, atacar, criar o caos ou apenas para fazer reconhecimento do terreno. Da coruja que sobrevoa para observar o território inimigo e identificá-los, do astuto (e chato!) texugo ao leopardo para uma aproximação mais stealth, ou dos ursos pardos e dentes-de-sabre para um ataque mais feroz. Esta é uma das melhores adições para uma fórmula que estava prestes a ficar gasta. Ou já estava?

Enquanto Far Cry 3 tinha um elemento de elevada qualidade com os actores, Primal investe numa linguagem menos sofisticada dos nómadas. A linguagem foi inventada pelo estúdio em Montreal, ou em parte, porque misturam-se com subtileza algumas asneiras e insultos ou calão para um toque de humor tal como é com a presença de alguns easter eggs espalhados no mapa. No entanto, isso não impediu para apresentar um bom leque de personagens com quem se interage ao longo da história, e algumas deixaram-me surpreendido por recordar algumas partes de Apocalypto. É inegável a influência de filmes como o de Mel Gibson e um je ne sais quoi de Roland Emmerich (independentemente do que se possa achar dos filmes), principalmente pelas práticas de caça conjunta e pelos diálogos rudimentares e descomplicados, ou da luta entre tribos pela perseverança de uma raça porque o que está em causa é a sobrevivência e o viver “por muitas luas”. Porém, a falta de narrativa impede um maior detalhe das personagens, mas há uma tentativa de aproximação através dos desejos ou dos próprios medos de cada um, ou mesmo da loucura consequente do meio que habitam.

Far Cry: Primal reformula a série, dá um corte substancial ao que nos habituou sem se afastar do seu epicentro, e dá uma nova vantagem (de viragem?) para o que virá a seguir. Conseguiu retirar as distracções que se encontravam nas terras gélidas dos Himalaias, e transformou-se em algo mais consistente, mais divertido, mais propício para a exploração sem que me desse alguma vontade de desligar a consola. Dar por mim distraído às 5h30 da manhã sem sono não é com todos os jogos… ou umas investidas no Metropolis Club.