Há uns meses, alguns de nós escrevemos uns artigos sobre o feminismo nos videojogos, e de quando em vez quando alguém levanta a saia a isto, fala-se e cria-se polémica sobre a representação das mulheres nos videojogos. Nem me lembro qual foi a polémica que nos levou a escrever uma série de artigos, deve ter sido algo parvo e inconsequente (não que o tema o seja) mas fiz um assim como alguns dos meus colegas aqui no Rubber Chicken. A questão é o porquê de voltar a este assunto? Para dizer o que não disse na altura, que The Legend of Zelda é o pico da representação feminina nos videojogos.

Em várias situações já coloquei em aberto o meu amor pelos jogos da Nintendo e em particular por esta série, mas nunca tinha falado dela nesta perspectiva, e agora, como uma daquelas coisas que não podem deixar de ser vistas depois de se reparar nelas, não consigo pensar noutra perspectiva. A razão disto foi o último artigo que eu escrevi sobre Zelda, em que o Ricardo Correia partilha da mesma opinião, que Midna do Twilight Princess é das personagens mais fascinantes deste universo, mas não é só ela, são elas todas!

Legend of Zelda 2

Como é que as mulheres (regra geral) são representadas nos videojogos? Inexistentes, secundárias, objectos sexuais fantasiosos, e pouco mais. É raro existir uma personagem feminina nos videojogos que seja protagonista e não seja objectificada. Mesmo quando há uma escolha entre personagens femininos e masculinos, é porque são personagens vazios, sem conteúdo e quanto ao visual (apesar do masculino ser irrealista também) o da mulher é muito mais revelador e muitas vezes distopicamente ridículo. Por exemplo, olhem para qualquer personagem feminino em Street Fighter ou Mortal Kombat. Preciso dizer mais? Não o vou fazer ou conspurcar este comentário com uma imagem ilustrativa disso.

Contudo, isso não acontece na Nintendo em geral, e mais em particular Legend of Zelda, as mulheres são retratadas de um modo respeitoso ao longo dos jogos, alguns mais que outros mas nunca como objectos sexuais ou irrelevantes. Nem sempre foi assim, os tempos mudaram e continuam a mudar, felizmente. Outrora Zelda, a icónica princesa da série, não era mais que a típica donzela indefesa que tem que ser salva pelo herói, mas mesmo nessa altura as coisas não eram tão lineares. Olhemos para o nome do jogo “The Legend of Zelda”, não é “The Legend of Link” logo aí sabemos que ela apesar de não ser a protagonista que nós controlamos é alguém que tem um papel relevante no jogo, nós não sabemos mas até pode ser o mais importante de todos.

Mas já voltamos a Zelda, vamos primeiro passar por outras senhoras de Hyrule, a partir do momento que eu considero a verdadeira clivagem igualitária neste universo, Ocarina of Time. E vou passar a falar em igualdade pois isso é que é mais importante que o fascismo feminista actual.

Um dos primeiros pontos importantes a ver neste jogo é oposição entre Talon e Malon, Talon é o dono de Lon Lon Ranch, e é retratado como um preguiçoso enquanto Malon, a sua filha é que faz o trabalho todo no campo, trata do pai, dos animais e de tudo mais. Por um lado Malon pode ser vista como uma personagem que é inferiorizada pelo pai, mas não. É ela que toma literalmente as rédeas do trabalho, mesmo quando o rancho é retirado ao pai dela, Malon continua a trabalhar lá, a tratar dos animais, e a fazer tudo o que pode, sem permitir que seja rebaixada. Faz o que tem a fazer e com orgulho.

Malon Legend of Zelda

Por outro lado, temos Ruto, a princesa dos Zora, os seres aquáticos de Hyrule, e apesar de ser uma criatura mimada que nos obriga a carregá-la dentro da barriga de um peixe gigante (ora aí está uma combinação de palavras que não é feita muitas vezes) em 1998, Ruto é uma epítome do feminismo quando dá o primeiro passo, e mete o joelho no chão (figurativamente) para pedir Link em casamento. Apesar de mimada, ela mostra que não é uma menina que vai ficar à espera que lhe venham tirar da sua vida sem cor, ela quando quer uma coisa, vai atrás dela. Quando Link aparece 7 anos mais tarde é Ruto que está no Templo da Água a tentar salvar o seu povo, não está à espera que alguém a vá lá salvar.

Princess Ruto Zelda

Outra personagem que é extremamente interessante aqui é Nabooru, chefe da tribo de mulheres em Gerudo Valley. É um pouco inspirado nas míticas amazonas e levanta questões acerca de procriação, mas uma tribo totalmente composta por mulheres não é algo que não se vê em muitos locais. As Gerudo são guerreiras eximias, a tal nível que Link nem sequer tem hipótese de lutar contra elas, basta uma vê-lo e ele vai directo para a prisão. Todos os outros inimigos são derrotáveis mas as Gerudo, são lutadoras tão excelsas que nem nos deixam tentar. E mesmo Nabooru é um óptimo exemplo da força das mulheres aqui: nasce apenas um homem de cem em cem anos na tribo que automaticamente é considerado o seu líder, mas Nabooru não se deixa levar por isso, ela luta contra ele para recuperar a liderança do seu povo.

Nabooru Legend of Zelda

E por último, Impa.

Impa é uma guerreira notável, a última do seu povo, os Sheikah. Sim, ela é uma mulher mas não se deixa rebaixar por isso, ela é a protectora de Zelda, e em certo ponto do Reino inteiro, é ela que guia Link em parte do jogo, foge com Zelda e a Ocarina do Tempo, e mesmo em jogos como Hyrule Warriors na WiiU e em breve na 3DS é das personagens mais assustadoramente eficazes do jogo. Usando uma expressão em estrangeiro é totalmente Bad Ass.

Impa Legend of Zelda

Mas não são só estas personagens aqui que dão uma relevância melhor às mulheres do que é dado na maior parte dos jogos. Elas não são só guerreiras e lutadoras, são guias como Navi (por mais irritante que seja) em Ocarina of Time, e Fi em Skyward Sword, são uma ligação emocional como Aryll e a Avó em Wind Waker (se não se comoveram com aquele adeus no jogo, vocês têm uma pedra mais fria que eu no coração) até são divindades. Não há uma divindade masculina em Hyrule. Há três deusas que deram a vida, Din, Farore e Nayru. Estas e outras aparentemente secundárias são a fundação de igualdade em que se assenta todo o mundo moderno de Zelda. Até a montada de Link é uma égua. Não é um garanhão que o transporta pelos campos é uma égua chamada Epona. Ela é que vai com ele para as batalhas, ela é que o acompanha em quase toda a aventura.

Existe mais uma mulher importante em Ocarina of Time que preferi guardar para este ponto chamada Saria, a amiga de infância de Link que ignorava o facto dele ser diferente e não ter uma fada como todos os outros. Saria é importante não só por esta razão mas porque é a primeira dos sete sábios que são necessários para salvar o reino, e mesmo neste convénio é relevante o número de mulheres que o compõem. Em sete, cinco são mulheres, respectivamente Zelda, Impa, Saria, Ruto e Nabooru. Outro jogo em que existe um número de mulheres consideravelmente grande e de nenhuma maneira (ou quase inferiorizada) para os homens é Hyrule Warriors onde dos vinte e sete personagens jogáveis (incluindo versões) onze são mulheres. Podia dizer treze mas a forma primária de Midna, e Sheik são mais antropomórficas que femininas, apesar de sabermos quem são “por baixo” daquelas figuras, mesmo assim onze mulheres, sem serem objectificadas como pedaços de carne de fantasia, são guerreiras poderosas que destroem legiões de centenas de inimigos tão facilmente como Darunia, Ganondorf ou Link. Até a criação de Linkle, uma versão feminina de Link com duas bestas é uma adição divertida, apesar de muitos acharem desnecessária.

Todos estes exemplos podiam chegar para exemplificar o quanto as mulheres domina Hyrule, mas não há melhor exemplo para isso que as duas maiores princesas do reino, a que reina a penumbra e a que reina a luz, Midna e Zelda.

Midna é das personagens mais carismáticas deste universo. De início é sarcástica e mordaz, mas vai gradualmente tornando-se mais sensível e amigável. Toma controlo da relação com Link (em forma de lobo) tomando partido se ser mais experiente num universo que ele não conhece. Midna é uma criatura forte que faz tudo para conseguir salvar o seu povo.

midna Legend of Zelda

Zelda não é muito diferente de Midna, mas teve um percurso diferente. Ou não, ambas são as próximas na linha para os respectivos tronos dos seus reinos e são depostas (se é o termo técnico neste caso) por homens que ambicionam esse poder. Contudo Zelda teve um percurso que nós podemos observar ao longo dos anos. De princesa indefesa de um reino que tem que ser salva no Legend of Zelda original, a líder do conselho dos sábios em Ocarina of Time, e ninja que podia ter salvo o reino sozinha quando disfarçada de Sheik. Até este outro personagem dela, uma espécie de alter-ego super-herói que não sabemos se é um homem ou mulher (suspeitamos que seja ela, mas no fundo não nos importamos), e aí está a beleza de Sheik. Mas não é só aí, Zelda tem papéis proeminentes nas batalhas finais de Twilight Princess, é a chefe dos piratas como Tetra em Wind Waker, líder de exércitos em Hyrule Warriors.

As mulheres de Hyrule mostram-nos que é assim que devem ser as mulheres todas nos videojogos, e no mundo real, nem acima nem abaixo de homem algum, mas lado a lado, em qualquer função. E se acham que falei pouco sobre cada uma delas foi propositado, uma mulher deve sempre ser misteriosa para ser descoberta aos poucos.