Não é pouco frequente que muitos veteranos da indústria abandonem a segurança das suas carreiras em grandes empresas e estúdios por uma última réstia de romantismo artístico nos videojogos e decidam enveredar por caminhos próprios, que têm desembocado em alguns dos mais promissores videojogos do mercado indie. Foi o que aconteceu com Luís António e a sua parceria com Jonathan Blow em The Witness, Ash Monif e o seu Dragon Fin Soup, passando pelo director artístico de BioShock e uma série de veteranos que participaram em jogos como Halo, Guitar Hero e Rock Band e que se uniram num estúdio, o Molasses Flood, de onde saiu este magnífico The Flame in the Flood.
A quase exaustão que os survival games imputaram ao mercado de videojogos foi quase sufocante. Numa tentativa de encontrar um pedaço do filão bilionário de Minecraft, muitos developers encheram o mercado com jogos em mundos abertos, processualmente gerados, e onde o objectivo era simples: sobreviver o mais possível. Já diversas vezes afirmei que nesta quase-fórmula dos survival games desta década, Don’t Starve da Klei Entertainment acabou por funcionar como benchmark para o que os jogos do género deveriam ser, e em muito se deve às decisões e direcção artísticas do jogo, que se destacou de todos os restantes concorrentes através de uma estética muito timburtoniana.
A experiência e o talento são perceptíveis nas pequenas coisas. Se tantas vezes sinto que alguns jogos indies falham por erros ingénuos de direcção artística ou de falta de capacidade de execução, em The Flame in The Flood sentimos exactamente o inverso. Os anos de experiência da equipa que se uniu no estúdio Molasses Flood é mais do que evidente, na forma como conceberam este mundo, de forma coerente, tangível, e na forma como o pintaram de forma distinta e única.
Há escolhas artísticas arriscadas em The Flame in the Flood. A estética quase disforme dos seus personagens enquadra-se na perfeição neste mundo pós-apocalíptico cuja paleta de cores é tão diferente daquilo a que estamos habituados. As cores saturadas, quentes, que povoam grande parte do jogo enquanto há dia coabitam na perfeição com os azuis escuros que compõem a paisagem nocturna, entrecortada por alguns apontamentos luminosos de calor que equilibram o jogo.
The Flame in the Flood não é o típico survival game onde apenas temos de sobreviver perante as adversidades, o frio, a fome, a doença, o cansaço, e os perigos e os predadores naturais, mas tem também uma outra componente, o da viagem em direcção ao desconhecido, rio-abaixo, na procura de oásis que teima em não chegar.
Scout, a nossa protagonista, e o seu cão, percorrem o rio furioso numa trémula jangada, que é simultaneamente uma mecânica do jogo. Temos de evitar colisões com os muitos detritos que se encontram pelo rio, porque se a jangada se quebrar isso significará a nossa morte. É também no trajecto pelo rio que vamos encontrando as muitas clareiras processualmente geradas e que constituem as habituais mecânicas de survival games. Caçar, recolher, manufacturar, misturar, e gerir o limitado inventário que possuímos para todos os itens que encontramos (e as respectivas receitas que permitem construir).
A chuva deixará a nossa protagonista encharcada e a temperatura baixa aproxima-la-á da hipotermia. Temos de encontrar uma forma de a aquecer e de encontrar refúgio para a noite. Na manhã seguinte a fome aperta mas o nsso abrigo nocturno pouca ajuda nos dá e temos de zarpar âncora em direcção ao rio, na esperança que uma nova localização tenha algo para enganar a fome e que nos permita sobreviver mais um dia.
Como em todos os jogos do género, a morte é uma constante. Não se pode dizer que haja uma total afinação do interface e da microgestão do nossos inventário, mas as pequenas falhas de The Flame in the Flood não o impedem de ser um dos meus jogos favoritos neste início de ano. Percebe-se a cada momento o talento e a veterania dos seus autores, que souberam criar apontamentos de verdadeira inspiração artística a um género saturado pela desinspiração. E que culmina na perfeita fusão com a música Alt-Country de Chuck Ragan que preenche melodicamente todo o ambiente estranho de The Flame in the Flood.