Há uma carga de novidade no primeiro olhar que não existe ao termos de nos debruçar opinativamente sobre um objecto que bem conhecemos, e ainda mais quando esse mesmo objecto é o nosso favorito dentro de um dado meio.

Há uma imparcialidade quase silenciosamente exigida para quem analisa ou publicamente expõe uma opinião que é a meu ver humanamente impossível. O acto de avaliar, observar e reflectir envolvem, para mim, cargas iguais de objectividade e subjectividade perante o objecto de análise, e são ambos ligados à idiossincrasia do seu autor. Por muito que se espere imparcialidade a um opinador, ela não é possível de atingir inconscientemente pela carga cultural/emocional que todos temos. Esta imparcialidade total seria apenas possível se as teorias empiristas de Hume fossem verdadeiramente aplicáveis. Coisa que para mim é refutada ao não reconhecer a possibilidade do conceito de tabula rasa: todos somos a súmula das diversas experiências que tivemos na nossa vida.

É verdade que queremos acreditar na nossa total e incondicional isenção perante um objecto que está a ser por nós escrutinado. Mas onde fica o peso incomensurável do nosso conhecimento e experiências anteriores, se o género em que a obra (neste caso o videojogo) se move é algo que nos é próximo versus a sua execução técnica? Onde ficam estes factores subjectivos (e objectivos, quando confrontados) perante a reflexão que fazemos de uma obra? E o impacto emocional, artístico, pessoal de quem experiencia a obra? Quer queiramos, quer não, todos estes factores estão presentes em quem expressa uma opinião. A menos que seja totalmente desprovido de uma, ou o seu conhecimento do meio seja tão insípido que o simples acto de opinar é por si só altamente desestruturado. E esta é coisa que não é incomum.

Day of the Tentacle Remastered (2)

Esta corrente de remasterizações acaba por deixar-nos à mercê desta incapacidade ainda mais notória de atingirmos a total e plena imparcialidade perante a análise de um videojogo. Receber esta semana Day of the Tentacle (também conhecido por Maniac Mansion II) para falar sobre ele é uma tarefa inglória. Tinha jogado muitos jogos antes de me cruzar com esta maravilha da LucasArts, e tinha jogado muitas aventuras-gráficas, mas certamente posso dizer que foi este jogo que fez de mim o jogador que eu fui nestes quase vinte e três anos que nos separam entre ter jogado o jogo a título de empréstimo e tê-lo recebido remasterizado para a geração actual.

O equivalente a esta dificuldade de imparcialidade seria igual se tivesse de me pronunciar sobre O ano da morte de Ricardo Reis de José Saramago, sobre o período entre 1910 e 1912 da poesia de Fernando Pessoa ortónimo, sobre o álbum Judgement de Anathema, sobre a pintura de Alphonse Mucha ou sobre o filme Naked Lunch de David Cronenberg. Cada uma destas obras, dentro do seu meio, definiu-me enquanto pessoa cultural, delineou o meu gosto e a minha sensibilidade. Reconhecer a importância artística de cada uma destas obras (a nível pessoal e global) resultaria sempre num exercício laudatório do que numa mascarada e inexistente imparcialidade.

Day of the Tentacle Remastered (1)

Há um factor que me farto de repetir, e que reside unica e exclusivamente no campo emocional e subjectivo: é possível adorar uma obra péssima e é possível detestar uma obra excelente. É claro que neste caso a avaliação qualitativa, o rótulo, é quase meramente pseudo-objectivo, e a avaliação de gosto é retirada da equação.

Se Mega Man é a minha série favorita de sempre, Day of the Tentacle é o meu jogo favorito, sem qualquer concorrência desde que o joguei. E acredito que dificilmente algum dia será substituído, mas se for, quem ganha sou eu. É que Day of the Tentacle conseguiu há 23 anos atrás encontrar o equilíbrio perfeito na já tremenda qualidade que a LucasArts desenvolveu dentro do género. Afinou o humor, aprimorou os puzzles, criou lógicas e mecânicas inter-temporais que definiram desafio e inovação, num jogo artisticamente soberbo, com laivos surrealistas que o distanciaram de qualquer outro até hoje. Mas um surrealismo q.b. não tão exagerado quanto o seu congénere Sam & Max. Ainda que não tenha enredos ou protagonistas tão emblemáticos que a nossa alma mater Monkey Island, Day of the Tentacle é o pináculo das aventuras-gráficas, em carga inventiva, artística e diversão. E finalmente sou obrigado a admitir: a versão remasterizada lançada pela DoubleFine é uma forma de cumprir justiça a um dos maiores jogos do género e da década de 1990.

Mantendo o espírito original, com a arte perfeitamente idêntica (não fosse a suavização da pixelização de um 1993, e seria praticamente o mesmo jogo), esta edição remasterizada é a grande oportunidade para as novas gerações descobrirem um dos grandes exemplos das aventuras-gráficas, e para os mais velhos conhecerem ou revisitarem. A proximidade com o original fez-lhe jus, e acabou por cumprir um melhor papel de gateway ao jogo do que as edições melhoradas (pioradas, para mim) dos Monkey Island originais.

Day of the Tentacle Remastered (3)

E voltando à pergunta e ao parágrafo de abertura, e respondendo-lhe: com a mesma honestidade como analisamos qualquer outra obra. Continuo a não acreditar na total e definitiva imparcialidade, e por um lado assumir que o “analista” transporta algo de si para a sua análise. E prefiro esse cunho de reconhecido New Games Journalism a uma forma puramente mecanicista de observar os videojogos, que são muito mais do que meras especificações técnicas: são na realidade arte e a sua experimentação, e que nos causam emoções e exigem um retorno dessa experiência. Analisar o nosso jogo favorito é um exercício de honestidade igual a qualquer outro, em que a transparência de admitir essa proximidade é mais libertadora do que condenatória. E à parte de Day of the Tentacle ser o meu jogo favorito, ele é também um dos melhores jogos do género, talvez até o melhor. E é obrigatória para todos os jogadores. E esta última apreciação é mais objectiva do que se possa imaginar.