Tenho três inimigos em meu redor. Dois deles apontam-me as suas pistolas enquanto o terceiro se prepara para me degolar com uma katana. Analiso friamente a situação olhando lentamente para cada um deles, as minhas pálpebras a abrirem e a fecharem muito devagar, a minha respiração calma e lenta. Os inimigos não estão parados. Mas mexem-se muito devagar, apenas milímetros em cada segundo, como se estivessem presos numa dimensão temporal que não é a mesma que a minha. Jogo com o tempo e tenho o tempo que quero para pensar. Feitas as minhas escolhas, avanço.

Avanço na direcção do inimigo atrás de mim que, entretanto, disparou a sua arma. Uma só bala é suficiente para me tirar a vida, porém desvio-me da bala projectada e vejo-a passar lentamente à minha direita. Tenho tempo e por isso permito-me parar um momento para observar a bala parada no ar. Invisto com um golpe de punho fechado no inimigo e apanho a arma dele largada ao ar, para de seguida lhe desferir um tiro com a sua própria arma. Ouço um segundo tiro e olho para a esquerda. A bala vem na minha direcção. Desvio-me desta vez para a direita e disparo na direcção do meu novo antagonista, enquanto também eu me desvio. A minha deslocação provoca uma mudança na trajectória da minha bala que falha por centímetros. Depois de carregada novamente a arma disparamos os dois quase ao mesmo. Espero até a minha bala atingir certeira a testa do inimigo e mesmo assim ainda vou a tempo de me desviar da bala dele, enquanto me posiciono de frente para o homem da katana que se aproxima. Tento disparar para o inimigo mas tenho a pistola descarregada. Já o vejo a movimentar a katana ao lado do corpo, preparando o golpe enquanto corre para mim. Mas tenho tempo. Atiro-lhe a arma que ao bater faz com que largue a katana no ar enquanto se desequilibra. Pego na katana ainda no ar e corto-o ao meio pelo tronco. Observo-o a cair enquanto surgem mais inimigos na sala, estes com metralhadoras e caçadeiras. Olho para eles, a minha katana na mão e, quando paro para perceber como me livrar deles, eles param também. Tenho tempo porque o tempo, esse, joga a meu favor.

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SUPERHOT faz-me sentir o melhor jogador de FPS de todos os tempos, mas já lá vamos. Primeiro, o conceito é tão simples que é surpreendente que ninguém ainda se tivesse lembrado disto: “O FPS onde o tempo se move apenas quando nos movemos”, isto é, só quando executamos alguma acção, seja ela o movimento, apanharmos uma arma, ou atirarmos uma garrafa, é que os inimigos se movem também. Quando paramos os inimigos movem-se a uma ínfima velocidade, um ultra slow motion quase parado que nos dá a oportunidade de analisar o cenário e os inimigos, pensar na estratégia e no próximo passo. Porém, o jogo movimenta-se, mesmo que muito devagar, por forma a obrigar-nos a estarmos atentos e a tomarmos decisões.

Simples resulta porém num jogo novo e fresco, num género onde a inovação é cada vez mais rara. SUPERHOT não é um Walking Simulator, género sempre em revolução e recheado de grandes ideias nos últimos anos. SUPERHOT é na sua génese um FPS tradicional, mas cuja ideia base de mecânica descobre caminhos novos. Existem aqui elementos do slow motion de F.E.A.R. ou da inovação mecânica de Singularity – existem até apontamentos gráficos que nos recordam PORTAL – mas SUPERHOT não parece nunca ser um jogo inspirado por outros. SUPERHOT é uma daquelas ideias que surgem uma vez, do nada, no meio de um Brainstorming, num duche, ou num sonho talvez. O jogo começou como o protótipo resultante da game jam 7 Day First Person Shooter, e quando foi disponibilizado online tornou-se um sucesso imediato (podem experimentar aqui), o que levou a pequena equipa a lançar um Kickstarter para um jogo maior. O financiamento pedido foi atingido em apenas 23 horas e os 100 mil dólares pedidos receberam mais 150 mil dólares adicionais na plataforma. Ficou no entanto a dúvida no ar, durante o desenvolvimento, se esta boa demonstração tecnológica não se esgotava numa dezena de níveis e se um jogo maior não seria repetitivo.

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Com um jogo maior a equipa caiu na tentação de introduzir uma história no jogo. Ora, a sabedoria popular avisa-nos que se não está estragado, não tentemos arranjar. Um modo de história em SUPERHOT revela-se algo desnecessário e até intrusivo. É certo que o modo de história é curto e, dependendo da destreza do jogador, termina-se em duas a quatro horas. É certo que o modo de história é quase um tutorial de 26 níveis para o endgame. Porém, está tão repleto de clichés orwellianos que quando ao lado de uma jogabilidade e mecânicas incrivelmente inovadoras torna-se o elemento menor. Ao longo das quase três dezenas de níveis a história parece um corpo estranho que se intromete no nosso acto de jogar. Talvez a premissa e objectivo fosse esse, já que a narrativa também mistura muitos elementos de controlo inspirados em elementos narrativos de Neuromancer ou de Matrix. Se é esse o caso, então é a execução da história que falha.

Regressemos ao facto de SUPERHOT me fazer sentir um dos melhores jogadores de FPS de sempre. Os FPS sempre foram jogos fáceis, se assim o quiséssemos. Desde os tempos de Wolfenstein 3D que foi sempre possível definir o nível de dificuldade do jogo para uma experiência de passeio calmo à beira-mar ou para uma longa e dura corrida de obstáculos militar. Mais tarde, com o nascimento e crescimento do multijogador nos FPS esta flexibilidade de adaptação a qualquer jogador perdeu-se. Quando vemos no Youtube um jogador de Battlefield a saltar do seu avião, matar outro jogador longínquo com um certeiro headshot de pistola e voltar a entrar no avião, sabemos que estamos perante um nível de habilidade que só vamos atingir com milhares de horas de treino, ou mesmo nunca conseguir alcançar. Daí que nos últimos anos eu sinta sempre que sou um jogador mediano de FPS. SUPERHOT faz-nos sentir super-heróis do género, uma vez que a quantidade de acções que conseguimos executar é enorme. Cortesia da câmara lenta, SUPERHOT proporciona-nos um bailado FPS que nos deixa conduzir a acção como se fossemos os maiores mestres da arte de jogar na primeira pessoa.

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O one shot kill deixa aqui de ser algo assustador para tornar o jogo num puzzle. A rapidez com que recomeçamos um nível conduz a que, sem frustração, recomecemos os níveis vezes sem conta até descobrirmos uma estratégia que nos permite terminar o mesmo. E a arte minimal do jogo destaca as peças do puzzle de forma a sublinhar apenas o que nos interessa: inimigos vermelhos e armas pretas sobre um cenário branco. A execução artística tem pormenores excelentes como a forma recompensadora dos inimigos se estilhaçarem quando os atingimos, os sons que também se arrastam no tempo, ou o rasto vermelho das balas a passarem por nós. É no entanto na execução do interface de menus do jogo que a equipa consegue o seu maior feito artístico, numa cópia dos interfaces do MS-DOS que corriam nos primeiros computadores x86 e nos elementos que normalmente possuíamos nesses computadores, como imagens e vídeos com muito pouca resolução, ASCII art, ou conversas em BBS. Se para as novas gerações isto é apenas algo com muito estilo (ou não) para os jogadores mais antigos é um belo regresso ao passado e uma massagem nostálgica na nossa memória.

O endgame de SUPERHOT é no entanto o que justifica a existência de algo maior do que o protótipo original. O modo endless permite-nos matar inimigos sem fim até sermos mortos também, com um contador enorme a somar as mortes; mas é o modo de desafio que nos proporciona horas e horas de diversão com o jogo. O Challenge Mode são na realidade vários modos que nos permitem abordar os 26 níveis de formas distintas: desde níveis que só podem ser terminados usando uma katana; usando os punhos; onde as armas só possuem uma bala; ou onde temos que terminar o nível no menor tempo possível. São 12 variações daquela que é já de si uma jogabilidade original e uma forma perfeita de ocupar o OCD presente em nós.

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SUPERHOT é uma grande ideia com uma execução perfeita que resulta num dos mais originais FPS de sempre. A história fraca e decalcada era completamente dispensável neste FPS em câmara lenta mas a jogabilidade e as muitas variações desbloqueadas depois do endgame proporcionam muitas horas e dias desafiantes que justificam que este protótipo tenha crescido para um jogo comercial. Tennessee Williams escreveu que o “tempo era a maior distância entre dois lugares”. Em SUPERHOT, o tempo é um conjunto de muitas distâncias entre o início e o fim. Cabe-nos a nós decidir qual a forma de ultrapassar essas distâncias. Felizmente, temos (quase) todo o tempo do mundo para o fazer.