Caro público-alvo, cansei-me de ti, de vocês; cansei-me de escrever para vocês.
Enquanto que os restantes redactores desta casa vos continuarão a acarinhar com belos textos, creio e espero, a partir de hoje ficam a saber: deixei há muito tempo de escrever para vocês.
Escrevo aqui para o resto da Humanidade. Os porquês são irrelevantes. Não me levem a mal. Pelo contrário, peço-vos que mostrem o que aqui leram a outras pessoas fora desta esfera.
Ao acabarem de ler isto, falem com a vossa mãe com sessenta, setenta anos, que aprendeu há uns meses a mexer no Facebook, que já sabe fazer “gosto” em fotos de amigos de infância. Mostrem também ao vosso vizinho, que se queixa que os seus filhos agora estão sempre “agarrados aos jogos”; que os miúdos já não vão à rua, como no seu tempo, jogar à apanhada ou ao berlinde. Mostrem à namorada ou ao namorado, que nunca percebeu o vosso hobby. Mostrem ao vosso professor de literatura, que acredita que os jogos não são e nunca poderão ser um meio artístico válido, que se reduzem a escapismo vácuo.
E agora que esse resto da Humanidade está cá, dirijo-me a este:
Caro não-público-alvo, peço-vos para irem este fim de semana ao Casino Estoril. Entrem, fiquem à espera ao pé de uma mesa pelo menos uma hora. Garanto-vos que irão ver alguém e desfazer-se de vários salários em poucos minutos.
A pergunta que vamos aqui considerar é: porquê? Porque o vício em jogos de azar é uma doença, como todos os vícios. A pessoa que destrói o seu salário numa roleta no Estoril também tem uma parte de si destruída por dentro.
Mas esta resposta não é suficiente.
O jogo, como meio, é poderoso. É uma mensagem poderosa. De há uns meses para cá, ando a trabalhar em Benfica – e quem está ou já esteve na mesma situação que eu, sabe que se uiva no Estádio da Luz quando há lá jogo.
Porque é que os adeptos uivam, e porque é que se fazem questão de serem ouvidos a quilómetros de distância?
O jogo não é uma droga comum. O tabagista fuma porque o seu cérebro pede; talvez se tenha convencido a si próprio que lhe dá prazer, mas é um pedido básico. O jogador de casino joga porque está com sorte. Porque “é desta vez”. Porque sente que “o seu número” vai sair agora.
Porque é que o jogador crê que tem um número, um número seu, um número que lhe dá sorte? O que é um número da sorte? De lhe onde veio essa ideia, e como se chega até ela?
Como é que uma grelha de números descreve uma relação quase espiritual, entre o jogador e o Universo, sob a forma de um número mágico? Como é que uma grelha consegue comunicar a alguém que no meio das regras todas infinitas do Universo, há uma que comunica especificamente com um ser humano específico?
Porque é que os benfiquistas vão ao estádio, porque é que querem ser ouvidos, ali, e não noutra ocasião?
Se a experiência não lhes transmitisse nada, porque é que haviam de ali estar?
O jogo não é um vício químico (será se pensarmos em química cerebral): é um vício intelectual. São as ideias que atraem, agarram e prendem.
E se o jogo é um meio de comunicação forte, porque é que não pode ser arte?
O meu sobrinho tem um jogo no telemóvel. É um homem que corre, e ele tem que usar os dedos dele para desviá-lo de obstáculos pelo caminho. Se o homem tropeça, o meu sobrinho perde: o jogo diz-lhe que se ele não chegar o fim do trajecto sem tropeçar, perde.
O meu sobrinho é um rapaz adolescente, e recentemente tem tido um aproveitamento escolar abaixo da média. Por causa disso, a mãe disse-lhe: “se no final deste período tiveres más notas, perdes o telemóvel”.
A minha irmã está a educar o seu filho; está transmitir-lhe valores, construir a pessoa que ele vai ser no futuro.
No entanto, há um paralelo entre a minha irmã e o telemóvel do seu filho, notaram?
“Se fazes isto, perdes; se fazes isto, ganhas.”
Esqueçam por momentos a imagem das crianças agarradas ao telemóvel, ou aos comandos na Fnac, pensem mais longe: pergunto-vos, e perguntem-se a vocês próprios: o que é um jogo?
Pensem nisto. Guardem isto convosco e vão pensando.
Até breve,