Imagine-se o seguinte cenário, se bem que extremamente improvável. Um centro comercial, a calma música ambiente quase imperceptível, as famílias passeando lentamente como os animais do zoo, os corredores largos de tectos altos, muito iluminados, onde tudo são reflexos e brilhos. Nas montras, uma após a outra, os seguintes letreiros mantém-se imutáveis ao longo de todo o ano: Não Fazemos Saldos; Preços Sempre 100%; Sem Promoções; Aqui não há descontos.
Longe de mim querer almejar à escrita de boa literatura de ficção científica, onde já existem pérolas como “o céu acima do porto era da cor de uma televisão, sintonizada num canal inexistente” (1); ou “a caça ao homem estendeu-se por mais de cem anos-luz e oito séculos” (2) e que logo nos fazem desistir de tentar. Mas o cenário que imaginei atrás, poderia ocupar um lugar na prateleira deste género literário, mesmo que fosse atrás dos livros a sério. Não existe não existirem descontos. Os descontos são demasiado proveitosos para quem vende, permitem despachar grande parte do stock das lojas e dar lugar às novidades. O espaço de armazém e exposição não é ilimitado e tem custos altos, daí que algumas vezes por ano os retalhistas tenham de nos fazer esquecer que não precisamos de 99% das coisas que nos querem vender. Mas com aquele selo de preço imbatível lá vai mais um livro para a prateleira, que provavelmente só irá voltar às nossas mãos quando mudarmos de casa 10 anos depois; ou lá compramos três dvds pelo preço de um, quando zero é o número de vezes que vamos ver qualquer um deles; lá vai a subscrição do ginásio em promoção mesmo que passemos a vida em casa a jogar – e que faz pandilha perfeita com aquele equipamento para fazer abdominais que já nem sabemos onde está guardado.

Netflix é o meu senhor!!!
Não digo que os saldos e promoções não sejam vantajosos. A roupa é um dos bens mais úteis para adquirir em baixas de preço, assim como algo tecnológico mais dispendioso que estejamos mesmo a precisar. Mas a verdade é que quando queremos mesmo um bem ou precisamos de algo não esperamos pelo preço promocional. Por vezes o que acontece é termos sorte, já que algo em promoção pode muitas vezes não ser o modelo específico que queríamos ou o tamanho que vestimos.
No mundo digital, os custos de armazenamento quase desaparecem na imaterialidade de um conjunto de zeros e uns. Existem custos de armazenamento, como o espaço em servidor, mas estes são tão residuais como o número de pessoas que dizem que não vão à Primark e, realmente, não vão mesmo à Primark. O resultado é a ausência de uma necessidade de vender conteúdos digitais em promoção. No caso de livros, filmes ou música é fácil observar esta tendência de não baixar os preços e quem está habituado a comprar digital só consegue ter alguma “folga” no caso de serviços de subscrição. Surge então o caso dos jogos digitais que é um caso único, um novelo de lã que está completamente emaranhado, um problema que ninguém parece saber resolver.

Volto já.
A culpa do problema instalado na venda de jogos digitais é paradoxalmente da mesma empresa que ajudou à existência das vendas digitais em primeiro lugar. A Valve e o Steam constituíram uma verdadeira revolução, cujo maior contributo foi a possibilidade da existência de todo um mercado independente de criadores, que cresceu e se tornou numa gigantesca fábrica criativa de jogos fantásticos e inovadores lançados na última década. Sem o Steam, a maior parte destes jogos nunca tinha visto a luz do dia, ou talvez nem sequer fossem começados e acabados. Graças também a eles, o Steam foi crescendo passo a passo até se tornar um colosso internacional de vendas. Mas, com grande poder vem uma grande responsabilidade, e a empresa de Gabe Newell cometeu uma grande irresponsabilidade em 2009 quando fez a sua primeira grande sale, o seu primeiro momento de saldos em massa. Para ser justo, esta primeira venda não foi o momento mais irresponsável. Esta venda foi provavelmente apenas mais uma ideia. Porém, esta venda foi milionária para a empresa. As sucessivas vendas seguintes já foram inconscientes, pois existe inteligência suficiente nesta empresa para saber o que iriam provocar: uma deturpação do modelo económico. Mas, assim como no Steam Greenlight, esta foi uma das primeiras pistas que Newell, tal como outro qualquer humano, embriaga-se quando ganha demasiado dinheiro. Se Gabe fosse um politico não lhe perdoavam 1/100 daquilo que faz mas, infelizmente, estão todos à espera do Half-Life 3 como se estivessem numa sessão epilética da Igreja Universal do Reino de Deus.
Existe sempre uma venda digital de videojogos à espreita no Steam, na PlayStation Network, na Xbox Live ou noutra qualquer loja virtual. As vendas e as promoções tornaram-se tão frequentes que já se torna difícil vender jogos fora destas vendas. Os criadores queixam-se. Após um disparo inicial da primeira semana de vendas – que conforme o nível de promoção e exposição, pode ser grande mas também pode ser um fracasso – os jogos digitais param praticamente de vender. A partir daí passam a vender consideravelmente apenas quando aparecem nas sales, mas isto não chega muitas vezes para que o jogo recupere o dinheiro investido. Jason Rohrer, o criador de Castle Doctrine, chegou a escrever sobre isto, afirmando que era muito difícil resistir às vendas, onde vendia 3 mil dólares de uma só vez, mas concluindo que no longo prazo as vendas acabavam por ser desastrosas para um jogo.
Existem excepções, e a mais célebre de todas é a de Minecraft, um jogo que não só não baixou de preço como foi aumentando. Minecraft já deixou provavelmente muitos compradores à espera de uma baixa de preço, mas que com o tempo perceberam que tal não ia acontecer e que acabaram por comprar a full price. Eu fui uma delas. Depois existem os AAA, com um orçamento de promoção maior que a repulsa que nos causam as aparições, não convidadas, do rabo nu de Kim Kardashian na web. Se este dilúvio de dois anos de anúncios, artigos, developer diaries, latas de bebida e caixas de cereais, cartazes e trailers não chegar, e caso os jogadores insistam comprar em promoção, existem sempre os DLC para limpar das mãos dos jogadores o dinheiro que pouparam ao esperar.

Just when i thought i was out, they pull me back in…
Concluindo, as vendas digitais e as suas promoções estão a rebentar com o mercado de venda de jogos, ainda muito dependente das vendas físicas, mas cujo futuro será exclusivamente digital. E o futuro, esse, já está condenado, porque no presente o modelo de negócio já está partido. As promoções resultam em dois grandes flagelos: 1) compramos centenas de jogos que não precisamos ou que nunca vamos jogar; 2) os jogos não recuperam o investimento. E com isto, o disco rígido dos nossos computadores torna-se um arquivo morto, o equivalente aos dossiers onde estão os recibos e facturas do IRS dos anos anteriores. Achamos sempre que ainda vamos precisar deles, mas só vão estar a ocupar espaço.
Como tentativa de resposta a este problema Tomasz Kaye e Richard Boeser resolveram criar a ferramenta e o site No Sale Promise. A ideia é simples: um site que gera um banner com uma data até à qual o criador se compromete a não participar em nenhuma promoção, bundle ou sale. Desta forma, quem quiser comprar o jogo não se sentirá enganado por uma baixa de preço, ou quem quer mesmo o jogo percebe se deverá esperar ou não. Claro que se o criador não respeitar o prometido nada lhe acontece – a não ser perder credibilidade –, e quanto maior for o período sem promoção mais o criador passa a mensagem de não querer baixar o preço. Daí que a No Sale Promise, mais que uma ferramenta é um manifesto. É uma tomada de posição. É uma ideia lançada para uma discussão urgente mas quase muda. A No Sale Promise é uma tentativa de devolver o valor aos jogos. O mesmo que nós deixámos de dar. Habituámo-nos a assistir sentados ao aparecimento dos bundles, descontos e vendas em promoção. Habituámo-nos sentados a carregar no botão de comprar. Habituámo-nos sentados a não jogarmos o que compramos. Habituámo-nos sentados a não comprar porque há-de estar em promoção, numa altura em que já perdemos aquela pica inicial para jogar. Habituámo-nos a isso… a deixar de jogar.
(1) Neuromancer, William Gibson
(2) A Deepness In The Sky, Vernor Vinge