Durante uma das missões iniciais do novo Uncharted 4, um pormenor ilustra a dedicação e a paixão pela qualidade, existentes ao longo de todo o desenvolvimento do jogo: a cena envolve Vargas, um guarda prisional, e um personagem altamente secundário que só aparecerá em poucas cenas. Normalmente, um guarda prisional é apresentado num videojogo como um bruto sem cérebro, sem qualquer dimensão de personalidade. Neste caso, sendo um guarda de uma prisão na América Latina, ainda mais habitual é ser usado o estereótipo do terceiro mundista. No entanto, Uncharted 4 vai mais longe, e quando Vargas se prepara para ler uma carta antiga, que deverá ter pistas para um tesouro, ele retira os óculos do bolso da camisa para ler. A preocupação da Naughty Dog foi até este pormenor – aparentemente pequeno – mas que entrega toda uma dimensão de realismo a uma personagem menor. Esta preocupação com o desenvolvimento de um jogo – chamemos-lhe até carinho – é exactamente o contrário do que acontece com a Disney e os videojogos. Mas o maior problema é que, para a Disney, isso não é problema nenhum.

“A mecanização é a melhor forma de servir a mediocridade”
Frank Lloyd Wright

A Disney anunciou que vai descontinuar a sua série de “brinquedos vivos”, Disney Infinity. Esta decisão não surpreende mas é grave, e a sua gravidade não é algo novo. Ao longo dos anos recentes, a Disney habituou-nos a encarar os videojogos como produtos menores, dando-lhes menos atenção em controlo de qualidade que dá a uma caneca ou a uma figura de peluche dos seus franchises. Uns minutos de observação aos brinquedos, roupas, e muitos outros acessórios, presentes numa Disney Store, mostram-nos produtos com uma qualidade elevada e uma boa atenção ao detalhe. Os preços altos destes produtos oficiais são até justificados pelo resultado final. O mesmo raramente aconteceu nos videojogos, com um pequeno período de excepção.

Lion King Video game

A relação entre videojogos e Disney conheceu no passado uma época de ouro, nomeadamente entre 1993 e 1997, com a Virgin Interactive, a Traveller’s Tales, a Capcom, a Eurocom, a Sega, entre outras, a criarem alguns dos melhores jogos de plataformas da História dos videojogos. O facto de tantos estúdios diferentes, criarem grandes títulos, devia-se ao controlo de qualidade que a Disney Interactive exercia sobre os videojogos das suas propriedades. Uma atenção às suas propriedades, e uma vontade em que espelhassem no digital a qualidade que se via na celulose. No entanto, após esta época épica e única, a qualidade foi diminuindo até níveis embaraçosos. Jogo da Disney passou então a ser sinónimo de cash-in, com mecânicas toscas e pouco polidas, nada ambiciosos, desinspirados, que tratavam as crianças como consumidores menores (no pun intended).

Existiu no entanto uma grande excepção, neste mar de adaptações medíocres:  Toy Story 3: The Video Game. Lançado em 2010, para acompanhar a estreia do filme, previa-se que fosse mais um caso batido: uma obra-prima a nível cinematográfico, acompanhada de um jogo que insultava as capacidades dos jogadores, qualquer que fossem as idades dos mesmos. O que aconteceu, curiosamente, foi o contrário. Toy Story 3 surpreendeu a crítica, com um jogo extremamente polido e recheado de mecânicas recompensadoras. Mas o que mais espantou os jogadores foi um modo em mundo aberto, com os personagens da série, recheado de missões principais e secundárias bem desenhadas, divertidas, e muito bem executadas em todos os departamentos: da narrativa, ao level design, passando pela arte e pelo som. Um pequeno GTA de Toy Story, sem a parte das prostitutas.

I still can't believe they've reach for the sky, with this one...

I still can’t believe they’ve reach for the sky, with this one…

Quando a Disney anunciou a sua entrada no mercado dos toys-to-life não consegui conter o entusiamo. Uma parte de mim – um misto do eu adulto com o eu que já foi criança – ansiava pelas figuras e pela possibilidade de jogar com as mesmas. Mas o que mais me motivou a escrever de forma inflamada, desde os primeiros dias, foi o facto de ser a Avalanche Software a estar à frente do projecto. Os mesmos de Toy Story 3 – e cujo jogo seguinte foi, o também muito bom, Cars 2. Disney Infinity prometia mundos abertos – o que tomando em conta a qualidade de Toy Story 3, era já de si muito promissor; Depois apareceram os primeiros protótipos das figuras, que mostravam uma enorme qualidade de fabrico, assim como uma estética muito particular, recheada de ângulos marcados, que emprestava um estilo cheio de personalidade a todas as figuras.

Disney Infinity first BatchO Frederico escreveu aqui, na E3 em 2013, quando foi uma das primeiras pessoas no mundo a experimentar o jogo: “Disney Infinity é como trazer a Disneyland para a palma das mãos. Tudo será possível, no sentido de haver intermináveis opções e podermos criar o universo que quisermos. A Disney encontrou, ou está prestes a encontrar, uma nova forma de jogar, com criatividade e imaginação”. O Frederico tinha razão. Avaliando porque tudo o que era mostrado, nada indicava o contrário. Nem nos níveis de história, nem nas possibilidade do modo Toy Box (um sandbox que supostamente permitia construir as nossas aventuras). E essa era também a mensagem da Disney. Infelizmente, no produto final, o resultado era outro. Os modos de história eram apenas jogos medianos e desinteressantes. Já o modo de construção era confuso e sem qualquer hipótese de promover uma comunidade em redor do mesmo (o que levou ao sucesso de outros como Minecraft).

Curiosamente, agora, depois da decisão de cancelar a série, o vice-presidente sénior John Blackburn afirma que “o nosso objectivo para Disney Infinity foi trazer à vida o melhor do storytelling da Disney e levá-lo a todas as casas ao longo do mundo”. Esta afirmação é simplesmente nojenta, e está tão recheada de corporativismo porco que tresanda. O que Blackburn e companhia fizeram foi tentar lucrar o máximo dinheiro possível com Disney Infinity, sem qualquer respeito ao legado da casa e marca que estão a representar. Não houve amor, dedicação ou respeito em nenhuma das decisões. Apenas existiram fatos e gravatas, folhas de excel – e provavelmente escritórios de administração demasiado grandes com aquele café que é cagado pelos macacos. Sim, estou  fod***.

Mad Obama

Percebi desde que comprei todos os primeiros packs, após rebentar com o cartão de crédito e começar a jogar, que estávamos perante um desastre. Disney Infinity foi desde o início um jogo medíocre, e isso é ser um crítico simpático. Figuras que ficavam maravilhosas na prateleira, acompanhadas de um jogo que se esquecia após as primeiras horas de jogo. O problema mais grave, no entanto, começou com Disney Infinity 2.0. Todos os playsets anteriores deixavam de funcionar na nova versão. Era necessário trocar os jogos para se jogarem os níveis das duas versões – o que ainda piorava mais pois as minhas versões eram de consolas diferentes. Quando Infinity 3.0 foi lançado, o mesmo problema novamente, agora multiplicado por três. Disney Infinity 3.0 foi no entanto o único em que o modo de história começava a ter alguma qualidade, mas o mal já estava feito. Star Wars faz milagres, mas numa demografia infantil não chega.

Pode-se reclamar que é o próprio género de “brinquedos vivos” que está gasto como modelo, mas tudo nos indica o contrário. Skylanders continua a bater recordes de vendas ano após ano, e os enormes números de vendas de Lego Dimensions mostram que este mercado continua muito apetecível. Há no entanto uma grande diferença em ambos estes franchises.  Ambos são jogos de qualidade. Sobre Skylanders já escrevi que “Skylanders: Swap Force é um dos melhores jogos existentes para o público infantil, e um jogo que respeita esse mesmo público, entregando-lhe mecânicas de combate desafiantes e afinadas, com um enorme trabalho e qualidade em todos os elementos do jogo”. Já sobre Lego Dimensions, o Ricardo Correia acha que “a Warner Bros. e a TT Games sabem a fórmula de Dimensions funciona porque está duplamente bem-executada. Por um lado as múltiplas formas que os conjuntos físicos de Lego podem assumir, cujos manuais de instruções são apenas desbloqueados in-game dão-lhes uma longevidade e uma diversão únicas. E por outro os novos mundos que se abrem com os novos packs comprados levam-nos direitinhos para a fórmula típica dos jogos da Lego. E a fórmula não só funciona como resulta sempre em sólidos e divertidos jogos.”

Infelizmente, a Disney deitou por terra uma enorme oportunidade, com um potencial avassalador, deixando-nos apenas com uma grande quantidade de figuras bonitas e nada mais. Para piorar as coisas acabou por destruir um bom estúdio no processo, uma vez as 300 pessoas da Avalanche Software vão ter de procurar trabalho, enquanto Blackburn será provavelmente aplaudido na próxima reunião de accionistas pela sua decisão. O maior problema nisto tudo é que de um ponto de vista corporativo a medida merece aplausos internos. A Disney não só abandona Infinity mas também toda a divisão de jogos, e passa apenas a licenciar os seus produtos a outras editoras. Algo que os accionistas devem gostar, porque a projecção de resultados vai conduzir a mais um barco ou ao novo modelo da Bugatti. Mas como jogadores, sabemos bem onde é que isso vai parar. A mais uma série interminável de jogos sem qualidade, onde quem detém os direitos só se importa com os resultados no balanço financeiro trimestral. Se dúvidas existem, basta olhar para Star Wars: Battlefront, mais um mediano que até já tem uma sequela – provavelmente mediana a caminho. Só encontro um ponto positivo em todo este pile of shit capitalista: Lego Dimensions passa a poder contar com figuras da Disney, Marvel e Star Wars.

O set dos Simpsons? No way. Ghostbusters FTW!

O set dos Simpsons? No way. Ghostbusters FTW!

Se já visitaram um dos muitos parques da Disney, por certo deram uma volta no “It’s a Small World” e passaram os dias seguintes a cantar a música. Essa, e outras atracções do parque, foram idealizadas e executadas por trabalhadores com amor à camisola, com respeito a uma história incrível de uma empresa que inspirou gerações ao longo de quase um século. Actualmente, no reino dos videojogos, a música é outra. Com Blackburn e companhia ao comando, o que nos fica impresso na memória é “It’s a Small Mind After All”.