Nota: Este artigo é resposta ao artigo “MORALIDADE E ESCOLHA: DESIGN EM RPGS OCIDENTAIS

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“Eles eram três, dois belgas e um francês. Um pegou na espada e zás, espetou. Espetou mas não matou… Vou-te contar como tudo se passou… Eles eram três, dois belgas e um francês. Um pegou na espada e zás, espetou. Espetou mas não matou… Vou-te contar como tudo se passou… Eles eram três, dois belgas e um francês. Um pegou na espada e zás, espetou. Espetou mas não matou… Vou-te contar como tudo se passou…”

Qualquer jogo, por muita liberdade e opções de diálogo, de escolhas morais e consequências, matematicamente terão de te cingir às opções que os produtores do jogo definiram. A liberdade está em escolher qual dos fios condutores os produtores te propõem, e isso é o que torna os videojogos únicos em relação a outras formas de narrativa, como os filmes ou livros (exceto as aventuras fantásticas).

Estes modificadores temporários, como lhe chama o autor do artigo, não tende necessariamente de alienar qualquer jogador. Isto porque simplesmente não foi criado um avatar, não foi criado uma personagem de raiz que é atirada para um determinado mundo. O jogador ASSUME Geralt of Rivia, uma personagem que existe e protagonista de uma série de contos do autor polaco Andrzej Sapkowski. Ou seja, a sua personalidade, as suas convicções e a sua forma de atuar foram previamente definidas pelo autor, e a produtora teve de se basear nestes traços físicos e psicológicos para a construção das narrativas dos jogos, que são muito próximas dos contos.

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No entanto, e sei que o artigo pega apenas em The Witcher como exemplo, o expoente máximo da escola ocidental, a CD Projekt RED vem da escola da BioWare. Não é difícil comparar as estruturas narrativas assentes no bem e do mal, nas escolhas e relações com as personagens, amorosas ou de simples amizade; as que sobrevivem ou permanecem convosco até à batalha final. Isto é BioWare no seu mais puro estado. E nem queria levantar o pó para dizer que o primeiro The Witcher foi produzido com o Aurora Toolset, de Neverwinter Nights… Se dúvidas houvessem.

Mas, pegando novamente no The Witcher, e nas questões de escolhas “condicionadas” entre o ir para a esquerda ou para a direita, neste universo não existe preto ou branco. Tudo é cinzento. Mas acredita que o facto de ir para a esquerda ou para a direita – um simples e patético modificador temporário, como lhe chamas – pode ser mais importante do que se espera… Geralt não faz favores a ninguém, a sua mutação retirou-lhe grande parte das emoções, e o facto de ser estéril não o ajuda a ter relações muito profundas com as mulheres, daí a sua postura de “putanheiro” – embora com o maior respeito do seu amor da vida Yennefer (e também Triss)…

Mas continuando nas escolhas morais, não entendo por que razão estas têm de se basear no tal medidor (seja ele invisível ou não) do mal ou do bem – como em KOTOR, no balanço da Força. E mais uma vez entra a ambição da CD Projekt RED. O mundo de The Witcher 3, enorme, com múltiplos finais, não condiciona os jogadores a escolherem as suas companhias, os seus amores ou quem matar ou deixar viver. A postura da personagem – e do jogador forçosamente – é ter de decidir qual o mal menor. Mais, é procurar saber qual o impacto que a personagem tem neste MUNDO, que vive e respira com ou sem a sua intervenção. Se não matarem um determinado monstro num local, a aldeia vizinha poderá aparecer chacinada. Mas como o jogador/Geralt sabe disso, se nem sequer tinha passado por lá? Tal como na vida real, a personagem não consegue estar em todos os lados em simultâneo – e se não estiveste neste lugar onde aconteceu esta catástrofe, onde andaste? A procurar uma espada mais poderosa?

Assim, perante o modificador básico, por que foste para a esquerda, e não para a direita, há cerca de cinco bifurcações atrás? Portanto, como referido no artigo, há uma falha em expressar qualquer tipo de consequência? As consequências estão no próprio mundo, muitas delas são tão vastas que os jogadores não percebem, e em discussões entre quem jogou há sempre detalhes que um experienciou e outro não.

O dragão e o gatinho

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Pegando no ponto das consequências, mais uma vez, e sobre as emoções, sobre a moralidade dos atos, não concordo com o autor e tampouco com o crítico de Matthew Matosis. Onde as inconsequências dos atos dos jogadores são condicionadas por não ocorrerem num mundo real. Em primeiro lugar, quando se encarna uma personagem automaticamente se está a envolver no respetivo mundo envolvente ao seu redor. Se assumo o Geralt eu quero matar monstros, eu saco da minha espada de prata para chacinar aberrações e a de metal para atacar humanos. E quando me engano, quando troco sem querer as espadas digo “porra, não é esta”. E troco-a. Estou a viver a personagem, e vou usar os seus sinais. Se sou membro da Divisão, quero ajudar a limpar Nova Iorque. E se estiver a jogar Pokémon, vou querer apanhá-los todos.

Eu importo-me com as personagens, e com o papel que representam. Mas não vou obviamente esquecer que estou num videojogo. Se ando a atropelar pessoas num GTA, a partir do momento em que desligo a consola, acordo para a minha vida real e não vou querer continuar a ação ao volante do meu carro. O que tem a ver uma peça de entretenimento com atos éticos? Mas se no final da minha aventura, as escolhas que fiz, levarem a minha personagem a morrer, ou alguma próxima de mim, eu vou ficar chateado com essa consequência, tal como ficaria na vida real, numa situação semelhante.

Mas para blindar esta comparação com o mundo real, e a incapacidade de separar as águas do virtual; ou melhor, de termos consciência de que essa inconsequência varia quanto mais ou menos plausível for o mundo em questão – para quem pensa que o mundo de Bioshock ou The Witcher são de fantasia, e monstros e Big Daddies não existem, por isso matá-los não acarreta qualquer peso na minha consciência, está errado. Um dos jogos que mais me emocionou foi um que focou a relação entre um humano e um alienígena – Another World – cujos sprites e limitações técnicas na altura não impediram aos seus criadores em oferecer as mesmas emoções que teria entre uma Elisabeth e DeWitt; ou dois soldados da segunda guerra mundial de um Brothers in Arms.

E nunca ninguém jogou um videojogo com intenções de se fazer um assassino ou um herói – a não ser que seja um terrorista e pretenda utilizar um simulador de voo com intenção de deitar abaixo um qualquer arranha-céus ou dois. Mas certamente jogar poderá fazer de ti uma pessoa melhor, ao fazer-te compreender a tua postura perante a sociedade.

Não se trata de transmitir culpa pelo assassinato de pixeis. Se não levas para a vida real aquilo que podes ser num videojogo, por que razão não levas tu para o videojogo aquilo que és na realidade? Isso talvez seja a maior dificuldade de um jogador: tens estas armas e podes matar tudo o que te aparece à frente, e até é esse o objetivo, mas e se eu não quiser? É uma experiência como outra qualquer, é uma imersão. Parar nos semáforos no GTA, e deixar os transeuntes passar, guardar distâncias dos carros da frente e não fazer ultrapassagens capazes de gerar acidentes, não são estas algumas possibilidades? E sim, há jogadores que respeitam o trânsito de GTA, acabam o Postal 2 sem matar ninguém, chegam a nível 100 de WoW sem sacarem uma única vez de uma arma… Sim, podem levar para o videojogo o vosso comportamento social normativo.

– Place holder –

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Os jogadores fazem escolhas baseadas na sua personalidade, mediante a liberdade que os criadores lhe dão. Se me derem três opções de diálogo no jogo em reação a que uma personagem me diz; eu vou procurar em uma das respostas aquela mais próxima da minha personalidade, do meu estado de espírito que a mesma me conceder, e claro, aquele que mais se aproxima da minha ambição. Estás a querer liberdade num videojogo para além das mecânicas que te são apresentadas. Num MMO tens essas liberdades expandidas, podes optar por não acompanhar um amigo numa Quest, atacá-lo, ofender a sua mãe – afastando-te das tais imposições que acusas os produtores fazerem.

Mas por exemplo, no The Witcher 3 – tu usas como exemplo, por isso, eu vou abusar do mesmo – uma das sequências finais há uma bebedeira entre as personagens. Aquilo é tão rico em humor, emoções transmitidas aos jogadores como poucos jogos alguma vez o fizeram. E não acrescenta nada à jogabilidade, narrativa, escolhas. É a atenção ao detalhe, ao ambiente, à imersão do jogador. Não teve que ser um obstáculo – os jogadores podiam terminar essa “festa” desde início, se o seu espírito fosse contrário. Não houve obstáculos, nem desafios ou objetivos. Fica a escolha dos jogadores entre quererem ou não confraternizar, mais uma vez, a ver com a sua personalidade.

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Perante isto, os videojogos não questionam constantemente a personalidade dos jogadores? Claro que sim. Os jogadores podem cunhar a sua personalidade, se quiserem, ou exteriorizarem as suas fantasias mais obscuras, um escape. Apenas não cruzam bases de dados para traçar o perfil dos jogadores – alguns já o fazem, como as séries da Telltale ou da Quantic Dreams, em que os jogadores são agrupados por escolhas. Se no Postal 2 encaramos um homicida, porque não tentar vencê-lo sem matar ninguém? É difícil, mas o design assim o permite. E antes que perguntem para fazer isso no Hitman, bom, quando adquiro um jogo e começo a jogá-lo já sei ao que vou, a minha escolha passa sempre por nem o jogar. É como me dizeres que tens um jogo de Rally, criticares a falta de liberdade por não poderes correr a pé.

Abstrato e cenas

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E mais uma vez, a arte é chamada a um tema de moralidade, ambiguidade e liberdade. Todos os jogos podem ser vistos do ponto de vista interpretativo do seu autor. Se olhas para o Journey na procura de perceber o que o seu criador estava a sentir, as suas referências e inspirações, procurar interpretar a sua ideologia; eu por exemplo, apenas gostaria de saber o que o Dave Perry fumava a fazer alguns dos seus jogos, como MDK e Earthworm Jim; o que o pessoal da Planet Moon Studios bebia durante Giants e Armed & Dangerous; tentando perceber de onde vinham aquelas ideias tresloucadas. Qualquer filme, obra de arte, jogo, álbum de música ou jogada de qualquer desporto contém materiais, textos, movimentos, acordes, letras, jogadas, que podem e devem ser levadas a interpretações distintas entre quem as experiencia. Dizer que a montanha de Jorney representa a meta, o final da aventura, ainda que não se saiba a distância ou como lá chegar é uma interpretação tão válida como discutir se um centro para golo de um jogador era mesmo intencional ou um simples tento à baliza, pela forma como bateu a bola e o tipo de chuteiras utilizado para o fazer.

Ken Levine é um escritor e designer que eu respeito muito, de que gosto, mas colocá-lo neste tema pelas escolhas de BioShock se limitarem a salvar ou não as Little Sisters já é abusar. Nunca me senti compelido por salvar ou não as pequenas, mas porque na mecânica do jogo estas representavam o acesso ao Adam e melhorias para a personagem.

Mais uma vez referes no código binário como forma de definir a ambiguidade nos jogos, entre o bem e mal, e que está errado, porque existem áreas morais cinzentas. Mas uma vez, todo o código de conduta de Geralt de The Witcher é cinzento, nem é bom nem é mau, ele é um caçador de monstros, sem sentimentos. Se ele decide ajudar alguém, pode ser por dinheiro, ou por algo maior, ou o mal menor. Embora os vilões não acordem e decidem que vão ser maus, as ditas pessoas de bem podem igualmente reagir ao jogador. A Bethesda já nos ensinou que os NPCs podem reagir radicalmente ao jogador por desembainharmos uma espada, disparar para o céu, ou simplesmente, roubar um garfo numa casa alheia. Se isto não é um código de moralidade em que o comportamento de uma personagem se adapta às tuas ações, então não sei o que será.

De todo o artigo, o que me chamou à atenção foi o teu “cargo” de designer ludonarrativo. Para ti, quais são os jogos que melhor se enquadram neste conceito? Todos aqueles que são abstratos o suficiente para deixar a história ao critério dos jogadores? Tal como uma criança que pega no prato à mesa e finge que está ao volante de um camião? Uma vez assisti a uma mesa redonda com Peter Jackson, Dr. Greg Zeschuk, Dr. Muzyka e Gabe Newell sobre qual a melhor forma de conduzir os jogadores durante a narrativa – intercalar com cut scenes ou sequências em tempo real com o motor do jogo; protagonistas com voz ou mudos de pé-de-cabra. Mas a história… a história! Essa, quem a conta é quem a escreve, e não quem a joga/experiencia…

Todos os produtores de histórias com bifurcações deveriam ver este filme. E perguntar “and if I…”

PS: No meio do texto, coloquei um subtítulo chamado “place holder”, que poderá ter diferentes interpretações. Pode ser um marco para não me esquecer de colocar um subtítulo. Pode ser um marco para o editor colocar aquilo que entender face ao contexto do assunto. “O autor deste texto é tão estúpido que se esqueceu de colocar o subtítulo ali”, interpretará um qualquer leitor. Bolas, as interpretações que uma distração poderá ter.