Querida PlayStation 2 – vês? Estou a cumprir a promessa. Na semana passada disse-te que iria fazer tudo para manter esta correspondência contigo regular e certa e, pelo menos por esta semana, estou a conseguir.
Na semana passada, não te falei num tesouro escondido. Acho que esta semana também não vou falar de pérolas que poucas pessoas descobriram. Sei que estou a fazer algo que quebra as regras, mas o jogo que te quero falar hoje é um dos meus jogos favoritos de sempre para a jóia da coroa que é a PS2 – embora não seja um exclusivo teu. É um jogo que adorei tanto que, na altura, joguei 6 vezes seguidas. Eu sei…não precisas dizer nada…digamos apenas que na altura esse jogo foi a terapia perfeita para combater os demónios internos que teimavam em tentar destruir-me.
Hoje quero falar-te de Manhunt e de James Earl Cash.
Lançado em Novembro de 2003 para a Europa pela Rockstar Games (embora tenha sido desenvolvido pela Rockstar North), Manhunt saiu destinado a ser controverso. Lembro-me que assim que saiu, uma reportagem na revista oficial da Playstation 2 começava com a frase: “Terá a Rockstar ido longe demais?” Chegou ao ponto deste jogo ter sido proibido em muitos países, temendo a “sociedade”, essa palavra tão bonita e abstracta que serve para definirmos o mundo civilizado, que o jogo tivesse um efeito negativo sobre quem o joga. Como se os jogos fossem os culpados pelos erros humanos. Como se a violência não existisse até chegarem os videojogos. Como se o ser-humano fosse no seu íntimo puro, apenas corrompido por esse “veneno” que são os jogos electrónicos. Hipócritas! Cobardes! Sempre à procura de algo a quem culpar pelas falhas e desumanidade contruídas por cada um todos os dias.
Desculpa por este à parte. Como psicóloga, sinto-me cansada que o Mundo insista em procurar fora, respostas que só se encontram olhando para cada um de nós.
Voltemos a Manhunt e a James Earl Cash. Manhunt tem das premissas mais simples e assustadoras que já vi num jogo. Depois do genérico, vemos James Earl Cash atado a uma maca, pronto para ser executado com injecção letal – um castigo para punir os seus crimes que não conhecemos. Na cena seguinte vemo-lo acordar – afinal não foi morto, apenas adormecido. Uma voz, vinda de alguém que não vemos, mas que se intitula como “The Director”, diz-lhe que ele acabou de ganhar a sua segunda oportunidade de vida. Uma segunda oportunidade que vem com um preço muito caro a pagar. The Director diz-lhe que gosta de fazer filmes “realistas” – os famosos snuff movies – filmes em que toda a violência que lá vemos é real. The Director oferece-lhe uma nova hipótese de viver, e para que isso aconteça, apenas terá que sobreviver a noite e conseguir matar todos os inimigos que encontra. James é lançado num bairro abandonado onde terá que defrontar o primeiro de muitos gangs do jogo. Cada gang controla um bairro e James terá que passar por todos eles.
Armas? Não – isso não existe para James Earl Cash. No primeiro nível, enquanto The Director “amavelmente” nos explica as regras do jogo, vemos que nós, jogador que vestiu a pele de James, não temos absolutamente nada com que nos defender. Aprendemos o básico, como nos mexermos, como atacarmos, como nos defendermos e continuamos a percorrer a rua sem nada para nos defender. Encontramos, mais à frente, um saco plástico. Sim – um saco plástico. Existe um homem que, de costas para nós, guarda um beco por onde temos que passar. The Director, uma voz sempre presente no nosso ouvido, incentiva à morte. Chama-nos cobardes. Chama-nos “Pussy”. Uma voz que em poucos minutos, já aprendemos a odiar. Percebemos que esta primeira morte terá que ser feita com um objecto inédito – um saco plástico. Mantendo pressionado o botão Xis ou Quadrado, percebemos que podemos executar uma morte em 3 níveis distintos: Normal, Violenta ou Hardcore. Cada uma delas tem um cinematic diferente e uma forma distinta de ser finalizada. Quanto mais violenta for, mais pontos ganharemos com ela. Pontos esses que servirão para desbloquear níveis adicionais no final. Terminar uma morte em Hardcore carrega um risco: O nosso inimigo pode virar-se, poderemos ter que lutar corpo a corpo, a luta criará barulho e o barulho atrairá mais inimigo que significarão, certamente, a nossa morte. Qualquer barulho que façamos (com os pés, a bater na parede etc) atrai inimigos e muitos inimigos significam o Game Over que se verá no ecrã.
Do saco plástico , passamos para um pedaço de vidro, e tanto uma arma como outra, serão armas que apenas podem ser usadas uma vez. Depois apanhamos armas de média duração (como tacos de baseball) e finalmente, bem à frente no jogo, encontramos armas resistentes e de longa duração, que nos acompanham por muito tempo. As armas são das coisas que mais amei no jogo – porque cada uma tinha 3 finisher possíveis. Existem cutelos, pés-de-cabra, martelos, facas, e finalmente…armas de fogo. Estas, quando as encontramos, são um alívio, mas confesso que retiram um pouco o prazer de jogar Manhunt.
No nosso caminho para sobrevivermos a noite, passamos por bairros diferentes, guardados por gangs distintos. Existe um gang de Neo-Nazis, um gang de máscaras que lembram o icónico Smiley, um gang que parece trazido de um grupo de soldados veteranos do Vietname (The War Dogs) e muitos, muitos outros. Todos diferentes e iguais no objectivo de nos aniquilarem. E o The Director vai-se deliciando com o nosso sofrimento, com a dor que causamos, com as mortes que executamos. Uma voz que constantemente nos deita abaixo e incita o pior de nós. Como eu o odiei desde o primeiro segundo e como o ódio foi crescendo em mim de nível para nível. No final de cada segmento, eu só pensava: “Quero apanhar e matar este Director”.
Manhunt é um dos jogos mais controversos que a tua era de ouro de Ps2 lançou (embora não como exclusivo). Manhunt nasceu para ser controverso. Um jogo repetitivo, com a mesma mecânica do início ao fim, com pouco ou quase nulo desenvolvimento de personagem principal, e uma violência tão gráfica que levou os mais puritanos a usarem sais para evitarem o desmaio.
Sempre odiei aquilo que apelido de “Violência Gratuita” – aquele tipo de violência que é inserida com o único objectivo de chocar, sem qualquer contexto numa história ou personagem. Mas em Manhunt, resultou na perfeição. Sem falar, para mim, James Earl Cash, dizia muito. Era um sobrevivente. Tentava isolar a voz que insistia em deitá-lo abaixo e que se alimentava do pior dele. Desde o genérico, um dos mais brilhantes e mais bem conseguidos genéricos que alguma vez vi, sentimos que entramos num mundo que não nos vai dar a mão. Um Mundo horrivel, cruel, que se ri da dor que causa e no qual teremos que sobreviver. No meio da escuridão da noite em que somos atirados, queremos apenas que chegue a luz do dia.
Manhunt seria, provavelmente, um jogo destinado ao fracasso caso saísse em 2016, onde os puritanos inquisicionistas do novo milénio viriam de tochas em punho para o queimar. Ou onde os jogadores, permanentemente ávidos de novidade, deixaram de apreciar o que é simples ou bem feito, procurando simplesmente o que é “novidade” (seja lá o que isso for).
Eu sei que sou muito emotiva com todos os jogos nos quais me envolvo. As emoções são o mais fascinante do ser humano e nada me faz sentir mais viva do que vivê-las…e com este Manhunt, nessa altura em que o meu espírito se via atacado por muitos “Directors” que teimam em nos fazer sentir inúteis e pequenos, Manhunt conseguiu canalizar essa dor, revolta e raiva Pura, para a consola. Através de James Earl Cash, eliminei “The Director” que me deitava abaixo e consegui emergir.
Mais uma vez, minha amada PS2, um jogo revelou ser muito mais do que isso – revelou poder ser uma experiência, algo que usamos para sarar, cuidar ou exorcizar partes de nós.