Arnt Jensen (director de Inside) soa-nos um pessimista crónico. Tal parecia evidente no tenebroso quadro grand-guignol que traçou do limbo católico em “Limbo”, imagem que até a Igreja ou Dante condenariam como excessiva. Mas Inside, a nova obra do estúdio dinamarquês Playdead (até o nome é deprimente) leva o negrume a um novo extremo, naquele que é uma espécie de greatest hits dos mais temíveis pesadelos da ficção-científica, num misto de “1984” com a manipulação genética de Huxley, salpicado com body-horror Cronenbergiano e uma sociedade zombie que lembra Invasion of the Body-Snatchers.
A abertura, de uma serenidade desarmante, engana: parece uma cena de um filme mudo baseado numa fábula infantil. Vemos um pequeno rapaz numa clareira de um pinhal escuro, com apenas o lento cair de folhas a perturbar o efervescente silêncio. Mas há algo de agoirento no curto prólogo, e assim que pegamos no comando e levamos o rapaz até à orla da floresta rapidamente damos por ele a ser perseguido por homens de fato, de lanterna e taser em riste, acompanhados de sabujos em trela lassa. O menino corre em esforço, de movimento atabalhoado, trôpego, genuinamente infantil; é impossível não sentir empatia por aquela figura frágil e terna (tudo graças à deliciosa animação de Andreas N. Grøntved, exemplo primoroso do tipo de perfeccionismo técnico que esperamos de um estúdio que chegou a ter um programador 3 anos a trabalhar exclusivamente a animação do protagonista de Limbo).
Qualquer passo em falso na vertiginosa perseguição e os antagonistas matam o rapaz num estrondo de violência seca, que uma vez finda nos deixa a sós com a impiedosa visão do corpo inerte do infante assassinado. A sensação que fica é a de que acabámos de ver uma execução das SS – fria e calculista, sem remorsos ou hesitações. Jensen é o tipo de autor que procura acima de tudo “ter os sentimentos certos ao longo do jogo”, usando o design lúdico como tela onde pode pintar episódios viscerais e evocativos como este. Por isso repete aqui (como em Limbo), o registo clássico e intemporal de Another World, com a sua variação minimal das plataformas bidimensionais de Super Mario adornada de quebra-cabeças ambientais à Braid.
Implicitamente, nega-se aqui esse grande mito contemporâneo de que a dimensão interactiva do artefacto videolúdico é uma qualidade exclusiva sua, e que por consequência lógica, deveria ser exultada até aos píncaros. Inside carece de um sistema de jogo prenhe de valor intrínseco, nem incorpora em si uma carga simbólica por aí além (o único resquício de ressonância temática está numa mecânica de controlo de mentes à Abe’s Odyssey). Jensen trabalha o objecto videolúdico sobretudo numa vertente plástica e arquitectural, com o jogo a servir o propósito maniqueísta de canalizar a acção e atenção do jogador para um percurso linear e prazeroso, passível de rigoroso controlo autoral. A simplicidade mecânica serve então para podermos focarmo-nos no mais importante: o mundo ficcional que espraia no pano de fundo, na periferia do campo de jogo.
A fuga do rapaz faz-se ao longo de diversos cenários que, quais meticulosos dioramas, nos revelam que algo de terrivelmente mau aconteceu ao Homem. Encontramos um meio rural que parece ter sido atingido por uma catástrofe, jazendo desolado e desprovido de cor e vida, com uma neblina miasmática a cobrir um sem fim de quintas e colheitas abandonadas. Restam aí como único vestígio de actividade humana valas repletas de restos de experiências científicas em suínos. A urbe virou ícone fascista – uma amálgama modernista de arranha-céus cinzentões, de ângulos e traços geométricos precisos e anónimos – em que drones controlam massas de gente que marcha em passo sincopado, como se fossem zombies, cabisbaixas e obedientes, por imensas avenidas desertas. E no centro de tudo – no Inside titular – esconde-se um lúgubre complexo laboratorial onde (sub)humanos são produzidos em série para serem escravizados por uma elite via um sistema de controlo mental que faria Orwell corar de vergonha de tão sinistro que é.
Embora afirme que não se interessa pela “narrativa no concreto”, Jensen usa um misto do storytelling minimal de Eric Chahi e o world-building da Valve (Half-life é uma obra predilecta sua) para aludir sobre as formas de autocracia tecnológica que adivinha para o amanhã, suportado na base de memórias que foi buscar ao passado recente (daí a associação, ainda que ténue, a imagética do pós-guerra). Não há aqui necessidade de narrar a odisseia do rapaz perdido numa mega-distopia via cutscenes infindáveis ou verborreias pretensiosas; Jensen mostra-a e deixa que as imagens falem por si… e elas gritam em plenos pulmões. A história torna-se entusiasmante por causa dessa mesma coragem em discursar sobre o nosso mundo, subtil e vagamente, deixando as grandes questões em aberto para o jogador interpretar – porque nos mostram este mundo? porque se instalou aquele sistema? qual a significância do rapaz? o que move a elite governante?
Inside acaba a ser um marco para o género da ficção científica videolúdica, porque não cai na esparrela de repetir formatos e códigos do cinema e literatura, e opera exclusivamente dentro de vectores expressivos únicos ao meio. Como Journey, é uma obra que respira um cuidado estético imenso – dos belíssimos jogos de luz expressionistas em sedoso chiaroscuro à portentosa ambiência electrónica de Martin Stig Andersen – sem nunca perder de vista o simples prazer cinético e lúdico de um jogo de plataformas. No fundo, nunca se esquece do que é: um videojogo, que é como quem diz, arte e jogo em harmoniosa confluência, num objecto profético que nos deveria encher de temor face aos perigos materiais e existenciais que a humanidade enfrenta. Olho para as notícias, e cheira-me que o amanhã de Inside está aí à porta… resta-nos esperar que Jensen não passe mesmo de um pessimista inveterado.