Um dos meus autores favoritos escreveu em The Decay of Lying que “A Vida imita a Arte, muito mais do que a Arte imita a Vida”. Eu aqui não vou discutir se anti-mimesis representada tão bem por Oscar Wylde é superior ou mais correcta que a mimesis de Aristoteles, vamos apenas para fins deste exercício que há uma imitação mutua, e que em alguns momentos a balança pende mais para um lado do que para outro.
Pode parecer que não tem sentido mas se aguentarem até ao final acredito que vai fazer algum. Espero eu…
Ainda no outro dia estava com a minha miúda a ver qualquer coisa olvidável na TV e disse “daqui a pouco vem aí o flagelo da training montage.” Dito e feito, ela disse que eu devia escrever sobre isso e ora aqui está.
Apesar de a primeira ser atribuída ao filme The Birth of a Nation (1915), a training montage tornou-se uma peste cinematográfica e televisiva após a mais marcante de todas em Rocky (1976)
Desde desse dia não foi só a 7ª Arte que foi inundada por esta fórmula. Uma ilusão começou a ser criada nas nossas mentes, assim como as comédias românticas nos fazem acreditar que há aquela pessoa especial que vai largar tudo por nós, que tudo vai correr certo, como os contos de fadas fazem querer acreditar num felizes para sempre, como os filmes de aventura fazem acreditar na vitória do bem sobre o mal, a training montage faz o comum mortal acreditar que não é preciso esforço e trabalho, treino e repetição para ser bom em algo. Basta umas cenas em cenários fixes, alguém a motivar, e uma música com bom ritmo (esta parte é essencial) para que do dia para noite, ou numa semana, ou em que espaço temporal o enredo necessite nos tornemos num especialista em seja o que for. A saga Rocky é especialista nisso, se não acreditam porque nunca viram nenhum, vejam os quatro primeiros. Se não têm tempo para ver todos vejam o Rocky IV, é 58% montagens de flashback do I, II e III, 23% training montages, e 19% outras coisas tudo ao som de James Brown e Survivor. A sério a música é essencial para isto, sem música não há nada.
Onde é que eu ia…
Ah sim, o problema das training montages é criarem uma ilusão da facilidade, mas a excelência seja no que for não é simples nem acessível de um modo quase mágico, é preciso praticar todos os dias, talento tem uma pequeníssima parte no sucesso, há muito gajo talentoso que não faz nada porque não pratica, e há muitos medianos que se tornam os melhores no que fazem por prática, e depois há os que têm o Jorge Mendes como agente e vão para o Barcelona apesar de serem uns cepos, mas isso são outras conversas.
Esta semana voltei das férias, não aqui ao Rubber Chicken mas ao meu emprego, e estive a falar com o meu grande e velho amigo Texugo, e conversávamos sobre o pior aspecto da vida que é precisamente o emprego, e como apesar de não trabalhar em algo pelo qual pratiquei (como é o caso dele) nem gosto (como é o caso dele) eu comentei que estaria igualmente farto de um emprego que mais parece uma pena de prisão. Antes de alguém comentar e criticar o facto de eu ter a sorte de ter um emprego e que há muita gente desempregada que gostaria de ter um por mais inútil que pareça, o problema é mesmo esse. É que as pessoas não querem ou gostavam de ter um emprego, as pessoas gostariam de fazer o que lhes dá felicidade, e infelizmente a sociedade obriga-nos a trabalhar para ter algum dinheiro para sobreviver, não para fazer aquilo que gostamos ou temos algum talento e precisávamos tempo para praticar e tornar-nos excelentes nisso, não nos deixa alcançar a felicidade e satisfação sem um trabalho e o dinheiro que ele traz. O problema é que a maior parte dos empregos não são trabalhos, são repetições incessantes para ocupar o tempo e no final conseguir algum dinheiro para sobreviver e talvez, com muita sorte fazer algo que amamos.
Este artigo já vai longo e os poucos que chegaram aqui deve estar a perguntar-se mas então e os jogos? Este é um site de jogos/entretenimento portanto os filmes até passam, mas e os jogos?
Voltando ao inicio do texto, eu falei na imitação mutua entre a Vida e a Arte, ora se para muitos de nós videojogos são uma forma de arte (discussão na qual não estou interessado nem vou entrar) como é que eles imitam isto, e quando?
Infelizmente é em mais situações do que eu gostava de ver.
Jogos tornaram-se mais básicos na maior parte dos casos. Simplificados ao extremo em estrutura apesar dos avanços no tamanho e nos gráficos. Peço aqueles que já são jogadores há mais tempo e passaram por mais gerações que comparem os nossos jogos antigos como Prince of Persia, Super Mario Bros. Contra, Castlevania, Street Fighter 2, Legend of Zelda ou Megaman com os seus equivalentes de hoje. Comparem como após um ou dois minutos iniciais o jogo já não nos ensinava nada, tínhamos que aprender por nós mesmos, com os nossos erros, e repetir até saber como fazer tudo, hoje em dia os tutoriais duram quase metade do jogo, e é quase impossível perder um. Infelizmente isso diz muito sobre a nossa sociedade de consumo no qual a gratificação tem que ser instantânea e rejeição e derrota quase nulas para não ferir susceptibilidades. Nessa altura mais antigo, como deveria ser na vida real era necessário trabalhar e praticar para ser bom, não havia hipóteses extra, não havia o segurar da mão constante e o apoio para não cair e esfolar o joelho, havia dureza, e agora há muitas facilidades.
É um daqueles casos em que a Arte imita a vida.
Outro caso é o emprego (atenção que digo emprego e não trabalho) espelhados no grind incessante característico de alguns RPGs e MMORPGs. Quantas vezes passámos horas sentados a clickar num botão do rato a matar pequenas criaturas, a minar, apanhar coisas, sem sentido, apenas para ganhar pequenos pedaços de XP ou qualquer moeda dentro do jogo. Sem outro sentido do que para estar ocupados, sem gosto, sem prazer, apenas porque sim…?
Podem achar que estou a contradizer-me para criar um ponto de discussão mas não é nada disso, há uma diferença entre um marceneiro ou carpinteiro passar horas a trabalhar madeira, a fazer armários e cadeiras e mesas, tornando-se cada vez melhor e estar sentado num escritório a atender clientes com problemas cuja resposta vem num guião e é tão simples como “já desligou e voltou a ligar?” 8 horas por dia. Há uma diferença entre um cutileiro passar anos a bater metal até fazer a lâmina perfeita sempre que quer, e um “colaborador” que passa todos os dias num escritório a passear pela net e no Facebook porque não tem nada que fazer. Uma coisa é repetir acções sem um objectivo específico para melhorar o personagem ou algo num jogo, outra é fazê-lo com um objectivo em particular, não se deve confundir, treinar com grind que não nos vai dar uma capacidade especifica, nem sequer um level up, apenas um tired down.
É por isso que eu acredito que o jogo que melhor imita a vida, o jogo mais realista do mundo é o jogo mobile, em particular o chamado Pay-to-Win.
Senão, pensemos nisso: Todos os dias, somos obrigados a fazer tarefas quase inúteis para pequenas recompensas, todos os dias, todas as horas somos forçados a fazer algo que não queremos, que no fundo nem gostamos, mas que algo nos impele a completar, e para quê? Porque essa mesma coisa diz que esse esforço vai ser recompensado, mas a recompensa não chega, não é aquela que a training montage nos prometeu, não somos os melhores, não ganhamos o ouro olímpico, recebemos apenas umas moedas. A não ser que tenhamos dinheiro suficiente para gastar em ser o melhor, e ter as recompensas facilmente.
Não é isso a representação perfeita da sociedade actual? Não são os jogos de vídeo arte?