Não existe nada tão infinito, inexplorado e misteriosamente complexo como o Mundo da nossa Imaginação. Um mundo tão profundo como o mar, tão cintilante como as estrelas e tão complexo como o código genético do qual somos compostos. Nesse mundo tudo cabe – principalmente o que não existe ainda naquilo a que nos habituamos a chamar realidade. O Mundo da Imaginação é um Mundo que partilha fronteiras com outro mundo tão vasto, infinito e desconhecido como o próprio universo que nos rodeia: O mundo dos Sonhos. Aqui, quando o nosso cérebro não está vigilante, não tem qualquer controle no que por lá se passa, também Tudo tem lugar: o que existe, o que não existe, o que já vivemos, o que já aconteceu, o que gostaríamos que tivéssemos acontecido, o que desejaríamos que nunca acontecesse, as nossas ambições, desejos, medos, dores e traumas. Tudo. Encontra-se em linguagem encriptada – em código – como se o nosso cérebro, sem o saber, enviasse constantes mensagens a si mesmo na esperança que um dia, o Ele acordado, as soubesse interpretar.

E assim levamos a nossa vida: o que chamamos realidade a teimar em calar a imaginação, nós a teimar em dar-lhe voz, e o Deus dos sonhos, Morfeu, a tentar encontrar um improvável equilíbrio entre uma coisa e outra.

É neste reino do Imaginário e do Onírico que se passa toda a acção de um dos jogos visualmente mais bonitos que já joguei até hoje.

Bound é aquilo que a indústria gosta de chamar um jogo Indie: um jogo lançado por uma produtora pouco conhecida, que se dedica a fazer projectos alternativos, projectos esses que podem crescer para além dos limites das restrições às quais as grandes produtoras são muitas vezes submetidas para poderem obter o lucro desejado.

Desenvolvido pela produtora Plastic, uma pequena produtora polaca criadora de títulos como Linger in Shadow e Datura, e lançado pelo Santa Monica Studios, estúdio responsável por uma das sagas de videojogos mais conhecidas dos últimos anos: God of War, Bound encontra-se neste limbo de ser um jogo Indie lançado por uma editora de Triple AAA.

Com alguma ironia, e apesar do limite orçamental, um jogo Indie é, em certa medida, muito mais Livre – ninguém espera muito dele…e sem expectativas, são poucos os riscos de desilusão….sem desilusão, são poucos os riscos de falhar. E é aí que a verdadeira Liberdade criativa acontece. E o que fez a Plastic com esta liberdade  ao criar Bound?

Bound dá-nos um início simples e silencioso…uma mulher gravida chega de carro a uma praia. Sai do carro e caminha pela areia em direcção ao mar. Transporta um bloco de notas – daqueles que na nossa infância usávamos como um diário onde, meticulosamente, escreviamos e pintávamos as nossas vivências e desejos na esperança de um dia se tornarem uma realidade. Senta-se e abre o seu caderno. Vemos um desenho…

No momento a seguir somos transportados para o verdadeiro Mundo onde iremos passar as próximas 5-6 horas da nossa aventura. Um mundo de formas geométricas, surreais e sem referência na nossa realidade, que parecem feitas de som e cor, cuja dimensão se altera à medida em que nos vamos aproximando ou afastando. Nesse mundo encontramos uma Bailarina sem rosto, a nossa protagonista, e a sua mãe – a Rainha deste mundo. A mãe sente que o mundo em que habitam está a ser destruído por um monstro e pede à nossa bailarina que o salve. A aventura começa.

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Somos a Bailarina sem rosto que, no seu amor incondicional à mãe, dança em direcção a um  Mundo vasto e onírico na esperança de o poder salvar. Sim – dança, não anda. Em Bound, Tudo é dança e é através da arte de musica e dança que a produtora Plastic nos leva a conhecer o Mundo de plataformas e mini-puzzles que criou para nós.

À medida que vou escrevendo este artigo, dou-me conta que descrever este jogo é tão difícil quanto descrever um sonho a outra pessoa. Tentamos organizar os pensamentos, passar as imagens, mas não conseguimos. É algo que apenas a própria experiência de quem sonha, ou de quem joga, consegue decifrar.

O que vos posso dizer é que Bound teve uma das ideias mais originais e simples que já vi, tanto na concepção da sua história como na forma como escolheu contá-la. Percorrer um jogo inteiro através da dança é uma das ideias mais visualmente graciosas e bonitas que já vi. Vermos a nossa bailarina sem rosto executar movimentos de dança para lutar, por-se em bicos de pés para poder passar por entre objectos que bloqueiam o seu caminho, executar movimentos quer nos transportam para a ginástica rítmica ou dança contemporânea para poder libertar de quem a tenta prender, é um absoluto deleite para os nossos olhos. Nas transições entre níveis, deslizamos por um tapete mágico que flutua por todo o cenário e acaricia a sensibilidade do jogador com a sua cor.  O vestido cintilante e metálico da Bailarina que somos agarra as cores à sua volta… as estruturas ganham dimensões que não conhecíamos… a música acompanha o bailado da nossa imaginação.

Por falar em música, a banda sonora de Bound é um poema sem versos que declama a aventura para onde somos transportados. Uma música tão fluída, subtil, graciosa e surreal como o cenário onde se insere. Pelo meio, encontramos segredos e vestígios rasgados de memórias reais da Bailarina (ou serão sonhos?) que tentamos “colar” para melhor podermos conhecer quem é esta dançarina e qual o seu real objectivo. A cada nível que terminamos a dançar, a mulher grávida na praia arranca uma pagina do seu caderno. As paginas vão sendo diferentes…como as memórias que representam e a cada vez que jogarmos Bound, a sua ordem alternará. Interpretar essas memórias, dar sentido a tudo o que vemos, cabe à Imaginação e capacidade de “sonhar” do jogador.

Contarmos mais seria explicar a minha interpretação. Seria explicar o sonho e não vos deixar experienciá-lo. Isso é limitar e condicionar a Imaginação – algo que jamais farei.

Apenas vos posso dizer que Bound é um jogo que se “prendeu” ao tentar libertar-se. Com um visual e jogabilidade única, do mais Bonito que já vi, poderia ter feito muito mais. As plataformas poderiam e deveriam ser mais difíceis, os seus puzzles poderiam ser um verdadeiro desafio, os momentos “rasgados” muito mais dispersos – algo que desse ao jogador a verdadeira vontade de os colar. É uma experiência audio e visual como poucas, cada vez mais rara nos dias que correm, mas é pouco ambicioso na sua liberdade. Ao ser um Poema, perdeu a sua noção de jogo.

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Mas se calhar a Alexa que tem que ser adulta num mundo que os outros chamam realidade, dominou a Alexa que se alimenta da Paixão e Imaginação. Talvez essa Alexa “real” já não consiga viver em pleno experiências que servem apenas para alimentar os sentidos… algo onde estes relaxam e se descobrem a si mesmos sem ser necessário desafios que os ponham constantemente à prova.

Talvez Bound seja pouco enquanto jogo. Talvez Bound seja um Poema cujos sonetos estão escritos em imagens que lemos nas horas que passámos a dançar.

Sim … talvez seja um Poema – e às vezes um Poema é tudo aquilo que o nosso cérebro precisa para voltar ao Mundo Infinito da nossa Imaginação.