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No Man’s Sky – Desenvolvido pela Hello Games e co-publicado com a Sony
Aprox. 7,3 minutos de leitura (250 wpm c/taxa de compreensão de 60%). Tempo recomendado a despender: 10 minutos (tempo do autor durante a revisão).

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Comecemos este texto apenas com uma mala. Consideremos agora toda e cada pessoa do mundo coloca no interior desta mala a suas expectativas relativamente a esta. Os desejos de qualquer amante de ficção científica, os sonhos de todos os que procuram uma guerra moderna num universo infinito, o que os grupos de exploradores esperam encontrar civilizações alienígenas colonizando planetas e a construir estações espaciais ainda maiores. Coloquem agora a mala às costas de quinze pessoas.

Foi uma mala cheia de expectativas que tornou No Man’s Sky um sucesso de vendas nas suas semanas em retalho, tomando como fundamento ter sido o segundo jogo a vender, na primeira semana, mais cópias físicas na PS4 no UK, depois de Uncharted 4. Observei, antes de redigir este artigo, que muitos acusam a Hello Games de falta de clareza como forma de justificar a expectativa que o mundo dos jogos depositou neste jogo. A última banana da bananeira, a esperança dos videojogos, todos apontavam para No Man’s Sky como um Every Man’s Dream, mas jamais o poderia ser. Pode ter havido sim, falta de clareza. Da mesma forma que sim, as própria Hello Games, quando questionada relativamente ao seu jogo, pode responder de acordo com aquilo que quer implementar, pondo de parte a realidade de que há prazos a cumprir. Mas há prazos a cumprir.

Não estou a tentar desculpabilizar ninguém, na verdade, longe de mim defender alguém que pode ter mentido para promover o que quer que seja. Mas ninguém me desconvence de que pelo menos metade dessa “ambiguidade” é independente das intenções do developer mas dependente da cultura hype. O que eu estou a desculpabilizar é o jogo. Esse jogo não tem qualquer tipo de culpa dos pais que tem e em nada as palavras que aglomero neste texto deverão tomar isso em consideração. Fez é um excelente jogo, e este é completamente independente do feitio da pessoa que o criou. Deixem as vossas expectativas de parte, não vai ser o que vocês estão à espera. Vai ser 50% o que a Hello Games pretendia fazer e não conseguiu e 50% daquilo que conseguiram, produto do seu esforço e suor.

No Man’s Sky é um jogo survival. Na verdade é o último jogo survival que conheço com este tipo de produção, o último jogo de survival que vendeu tanto como um Fifa na semana de seu lançamento. No Man’s Sky é um jogo sem super-heróis. No Man’s Sky é um jogo que pega nas suas conquistas tecnológicas e abraça-as com tanta força que torna difícil distinguir o desleixo da intenção. No Man’s Sky é um jogo sobre solidão e sobre aprender a dizer adeus ao que parece nosso, mas não é.

Não é um jogo com uma super produção cinematográfica, nem tem quick-time events. Não tem multiplayer, nem nada extremamente interessante para fazer.

Em No Man’s Sky, tudo o que temos é uma mala. É nessa mala que temos de levar o que precisamos, o que eventualmente vamos precisar e as tecnologias de que nos munimos, tendo sempre em consideração de que o espaço é limitado. Temos também outra mala, desta vez com asas e motores, que serve também o propósito de amplificar a nossa mobilidade por um universo que, do nosso ponto de vista, é infinito. Porém, há que reconhecer que para quem espera mundos, é pouco. Bolas, até para mim que, após me aperceber a partir de outros testemunhos na internet, esperava pouco, foi complicado aceitar as minhas primeiras duas horas de jogo. Não estou a gozar ou a tomar uma posição parcial para atingir consenso criativo. Foram genuinamente duas a três horas dolorosas (puro sofrimento) devido ao que acontecia perante os meus olhos, poderei lá eu entender a frustração de quem esperava mundos. Mas bolas, a “matemática” tem destas coisas.

Não é preciso ser um génio para entender a heurística por detrás da expressão “Geração Procedimental” (ou, como os “entendidos” lhe gostam de chamar, procgen), uma vez que a explicação reside inteiramente na semântica das suas palavras. Gerar através de processos, ao contrário de gerar instâncias, ou se preferirem (e suportarem o calão), gerar à mão. Na humilde secção 5 deste artigo existe uma pequena demonstração de como retornar bns sem realizar uma análise por casos, da mesma forma que em vez de conceber um mapa, se construiu uma função para devolver terreno mais próximo de acordo com a minha posição no universo de No Man’s Sky. Tendo este jogo 5 gigabytes em tamanho, seria preciso que cada byte armazenasse 200 milhões de planetas caso os fossem gravados em memória, uma vez que este jogo tem cerca de 18 triliões de planetas (exactamente 2^64). São números de tamanho colossal e nunca antes vistos num jogo nem na indústria dos videojogos. Minto, uma vez, em Portugal, venderam-se 18 triliões de videojogos.

Números surpreendentes, mas e o conteúdo? Não se torna repetitivo?

Da minha perspectiva, sim, da perspectiva de qualquer outra pessoa, tão repetitivo que é inaceitável. E até concordo que possa ser um pouco inaceitável: basta olhar para os puzzles de números nos outposts, que têm consistentemente a mesma solução. Existem inúmeras formas de gerar simples puzzles de números diferentes, mas das 70 ou 90 horas que investi da minha vida neste jogo só vi dois tipos de puzzles. A fauna consegue ser mais variada que a flora, principalmente depois de reconhecer que quanto mais próximo do centro da galáxia, mais estranhas as criaturas são. E não é só a diversidade da fauna que se encontra balanceada à medida que a distância ao centro diminui, também os planetas conseguem mais hostis e até visualmente mais interessantes. Mas leva tempo, bastante tempo. Principalmente àqueles que gostam do jogo por aquilo que ele é.

Sim, referi há mesmo muito pouco tempo que joguei de entre 70 a 90 horas de No Man’s Sky desde o lançamento. Também assumi a hipótese de, independentemente de ter acabado de criticar o jogo, ser possível gostar do jogo por aquilo que ele é. Muitos referem a expressão “endless grinding” e, não tão surpreendentemente, é verdade. Mas:

We’re going to look at the games made by a friend of mine named Coda. Now these games mean a lot to me. I met Coda in early 2009 at a time when I was really struggling with some personal stuff, and his work pointed me in a very powerful direction, I found it to be a good reference point for the kinds of creative works that I wanted to make.

TheBeginnersGuide (1)

Coda cria um jogo que consiste em arrumar uma casa (arranjar almofadas, fazer camas, lavar partos, etc…) em loop enquanto estabelece um diálogo com outra personagem

After the intense set of prison games, this housecleaning level almost feels like cleansing. It’s the moment after a particularly difficult or traumatic experience where you just need to let it sit and digest inside of you, and eventually cohere into something meaningful. I know that Coda really liked this game.

E é neste ciclo infinito de grind que reside uma parte fulcral da beleza de No Man’s Sky. É em estabelecer mecânicas simples e compreensíveis (apesar de aparentemente demasiado ameaçadoras para qualquer pessoa a fazer um juízo de valor relativamente a este jogo) capazes de sustentar um espaço confortável, pacífico e propício a meditação. O tempo vai passando e a cada momento as pequenas coisas tornam-se maiores e mais brilhantes. Aquele ser que parece igual a todos os outros, olha para ele. Mas não, olha a sério, repara nas suas características. No Man’s Sky é verdadeiramente surpreendente quando paramos e pensamos para nós “mas será que eu tenho noção de onde estou, das coisas que me rodeiam?”. Por vezes No Man’s Sky mostra-se mais que uma experiência meditativa, algo quase transcendente e que tão difícil torna o meu trabalho de escrever sobre ele, mas não simplesmente por isto.

O jogo excede-se quando combinamos o último parágrafo com a sua escala, na verdade, com o facto de estarmos a ser constantemente desconvencidos relativamente a ela. Assim que concebemos uma ideia do quão pequenos e insignificantes somos, No Man’s Sky destrói-a e surpreende-nos mais uma vez, fazendo-nos colocar as mãos à cabeça. É isto que nos faz perguntar porquê, porque é que estamos a dirigir-nos para o centro de algo tão vasto? É por ver o caminho que resta, é pelo tempo que cada viagem demora, é por sermos obrigados a aceitar que todos estes mundos que visitámos (com magníficas espécies a quem demos nomes!) têm de ficar para trás e que muito provavelmente não os vamos voltar a ver. De que vale pôr o nome ou olhar para eles, se nunca mais os vamos ver?

Dificilmente alguém chegará ao centro da galáxia sem completar a platina de No Man’s Sky e, considerando que usualmente este tipo de achievements servem para prolongar a longevidade de um videojogo, servirá aqui como forma de a encurtar? Claramente não vai ser suficiente para mim, uma vez que eu continuo e continuo e continuo a jogar. Talvez porque, no fundo, jogar, ou, diga-se, grindar até ao infinito, é uma forma de me conformar, de me sentir bem num universo onde tudo o que sou, tudo o que faço é completamente indiferente. Atribuir significado através das coisas que faço e não daquilo que represento é bom, principalmente quando intercalado com a ideia da nossa insignificância, que nos transcende em todos os sentidos. É bom haver uma casa para limpar entre prisões.

Imaginemos que só temos uma mala. Mas, desta vez, em vez de expectativas ou recursos, vamos colocar na mala apenas as coisas que a representam. Umas capas de livros de Sci-Fi dos anos oitenta e/ou noventa, um simulador básico de voo, um sistema de trading humilhante, um esqueleto de um jogo de survival básico (ainda que bem conseguido e equilibrado), uma lore desinteressante (ainda que ligada com as ideias que acabei de discutir convosco) e a possibilidade de ir a qualquer lado que conseguimos ver. Fechemos a mala. Coloquemo-la às nossas costas. Parece mais pesada do que as coisas que lá pusemos dentro, pois claro. Se é intencional ou por engano não faço a menor ideia, mas impressiona-me que com tanto espaço se consiga fazer tão pouco jogo e ainda assim se conseguir alcançar tanto e fazer tanto sentido.

Caso não tenha ficado suficientemente claro, é extremamente difícil para mim falar de No Man’s Sky. É efectivamente um jogo que tem muito para se discutir se nos limitarmos ao que é exterior a ele: O hype incomparável, as “mentiras” e a falta de clareza de Sean Murray e da Hello Games, o patamar tecnológico nunca antes atingido… É um jogo que, nas suas mecânicas, peca pela sua simplicidade e falta de cuidado. Mas é tão difícil deixar tudo isto claro ao mesmo tempo que se adora cada segundo naquele universo. Talvez tudo o que disse te possa clarificar sobre o que esperar e o que pode representar este jogo para um humilde português como eu, mas só tu podes dizer se aquilo que vais sentir vale os 59,99€.