Caçada Semanal #37
Há um ciclo vicioso na produção massiva de objectos culturais, em que a forma amplamente ultrapassou a profundidade do conteúdo e em que o grande público pouco parece sentir-se ofendido com a vacuidade que recebe da parte do mercado mainstream. O maravilhamento técnico, o hiper-mimetismo, a verosimilhança com a realidade como única procura tem vindo progressivamente a esterilizar o esforço das grandes companhias e a amorfizar os consumidores. Ou vice-versa, num Ouroboros indistinto de autofagia pronunciada.
No caso dos videojogos “os gráficos”, a forma simplista como o senso-comum os descreve parecem dominar a importância da avaliação subjectiva e qualitativa de qualquer jogo. O público procura-o, muitos media eternizam-no.
O léxico dominante passou a ser o “1080p”, o “4K”, os “60fps”, o “Ultra”, a “Master Race”, substituindo rapidamente aquilo que devia ser uma reflexão cultural por pouco mais do que especificações técnicas.
Como tantas vezes já repeti, cabe ao mercado indie o ónus do risco e da quebra dos cânones do simplismo do ideário mainstream (ou da falta dele), em que as ideias, os conceitos, as mecânicas e a essência dos videojogos residem numa depuração quase total, em contra-corrente com o mercado actual. E é com três desses exemplos que regresso às Caçadas Semanais.
N++
Um dos action platformers mais interessantes e eficazes que jogámos nos últimos tempos, é, ironicamente, um dos maiores exemplos de minimalismo estético do qual me posso lembrar. Num jogo em que a pouca narrativa reside na ideia de que somos um ninja e que temos de conseguir ultrapassar uma enormidade de obstáculos para alcançar o final de cada nível.
Com uma apresentação que nos remete (quase) para os tempos da Atari 2600 do qual o nosso Sérgio tanto gosta, N++ traz-nos um género reduzido aos seus elementos primordiais, mas afinado até ao mais ínfimo pormenor.
Ao contrário de outros platformers que parecem fazer um all-in na surpresa visual, N++ tem das físicas mais apuradas ao nível do ímpeto da elevação e os muitos tipos de saltos que o nosso multi-atlético ninja consegue executar.
N++ é difícil, e presta-se a um desafio inversamente proporcional à sua complexidade visual. Uma tarefa árdua de ultrapassar nos mais de 1000 níveis que o constituem.
INVERSUS
Se há algo comum na infância de todos nós, tenhamos ou não enveredado por formação e carreira nas Artes, era a capacidade de desenharmos nas folhas quadriculadas dos cadernos. Essas garatujas inanimadas faziam-nos voar, ganhavam vida para além dos limites poligonais da folha. Adicionem a esses quadrados desenhados que faziam parte dos nossos cadernos a capacidade de dispararem tiros uns contra os outros e têm aquilo que no fundo INVERSUS é: um dos mais originais arena shooters do ano.
Numa época em que arena/multiplayer shooters é mnemónica quase instantâneo de Overwatch, é curioso como vemos um jogo tão original como INVERSUS surpreender-nos do alto do seu minimalismo quase infográfico. Três cores apenas (vermelho, preto e branco) e duas formas (quadrado e círculo) constituem um dos mais dinâmicos e frenéticos shooters em que tocámos. Seja no modo individual, ou em multiplayer local ou online, de um-para-um ou de dois-para-dois, o caos quase aleatório de INVERSUS revela-se um desafio de reflexos surpreendente: entre percorrer o nível sem ser atingido e recarregar as nossas balas com os muitos pontos que vão sendo deixados como despojos de guerra pelo nível, há muito para gerir em fracções de segundos com estes quadrados.
E como podem ver pelo trailer, não é a depuração que o impede de ser um dos grandes indies do ano.
https://www.youtube.com/watch?v=NnAAWKt09yo
Metrico+
Ver o crescente interesse dos media, em especial os digitais, pela infografia é um tremendo prazer que não é trazido apenas pela minha formação como Designer de Comunicação. Há algo de elegante, sucinto, imediato, numa boa infografia e na forma como a informação é organizada e apresentada ao receptor.
Quando falei do jogo anterior, INVERSUS, falava de uma depuração quase infográfica. Ironicamente (ou não) Metrico+ é a nova versão do puzzle platformer lançado originalmente para Vita em que todo o ambiente é. justamente, constituído unicamente por infografias.
Num artigo cuja tónica assenta também na dificuldade, Metrico+ eleva os puzzle platformers a outras zonas: gráficos de barras ou circulares, indicadores textuais e tantas outras referências e ferramentas de comunicação visual que unidas constituem dos mais desafiantes e inventivos level designs que o mercado indie teve o brilhantismo de nos presentear.
Mas acima uma prova que um certo tipo de abstracção matemática pode também constituir uma das mais inspiradoras e diferentes abordagens às clássicas plataformas.